Salve-se quem puder

As novas gerações parecem enfadadas com os temas dos Direitos Humanos. 

Se é verdade que as afirmações genéricas contêm por natureza um grau maior ou menor de injustiça, não é menos verdade que as tendências sociológicas dominantes têm de ser detectadas, compreendidas e analisadas, para que não pactuemos com a criação insensível de um mundo comandado pelo individualismo e pela indiferença ao sofrimento. 

Ouço a cada vez mais jovens pretensamente emancipados, de ambos os sexos, que o feminismo “já não interessa nada”. 

São os mesmos jovens que acham naturais os namoros embrulhados em tareias (“problema deles”) e que respondem às histórias de submissão e violência doméstica ou mutilação genital com o argumento da “diferença cultural” e da “escolha individual”. 

As notícias que recolhem na internet deixam-nos cada vez mais imunes: o que lhes interessa é saber como vão sobreviver neste mundo em crise, filhos que são de pais deprimidos e desesperançados, que os criaram, com maior ou menor consciência, na cartilha da desconfiança, do medo, do proteccionismo excessivo e do salve-se quem puder.  

Entretanto, a comunicação social faz de conta que se horroriza com as biografias populistas e rentáveis de jovens que trocaram a escola pelas milícias do extremismo islâmico, e promove-os como heróis épicos dos tempos contemporâneos. 

A associação terrorista auto-intitulada 'Estado Islâmico' é assumida como tal, sem aspas, pelos media. Os efeitos deste endeusamento do mal e desta ausência de distância crítica são devastadores na formação dos mais novos. 

Tudo se equivale, e só os resultados estabelecem as diferenças: números, sempre e só os números. 

Sabemos que há em Portugal meninas sujeitas a abusos sexuais, a mutilação genital e a casamentos forçados.

Prepara-se agora uma lei que torne estes 'casamentos' um crime público, isto é, independente de queixa da vítima. 

Essa lei é urgente, mas também ela não resolverá tudo, porque o medo é ainda o caldo fundamental da cultura portuguesa, como de todas as culturas com historiais longos de prepotência e arbitrariedade. 

Se uma mulher é violada pelo seu próprio médico e a Justiça iliba o médico, como aconteceu há pouco tempo, de que vale recorrer à Justiça? 

Se uma mulher apresenta queixa na Polícia das ameaças de morte feitas pelo seu ex-companheiro e acaba assassinada uma semana depois, quantas mulheres se sentirão impelidas a denunciar os seus algozes, sabendo que nada será feito para as proteger? 

A mensagem que estamos a transmitir aos nossos filhos é a de que sejam espertos, passem entre os pingos da chuva, engulam as ofensas e não se mobilizem por nada nem por ninguém. 

Exortamo-los a que tratem das suas vidinhas, aguentem com boa cara as humilhações quotidianas e passem ao largo quando tropeçarem numa injustiça cometida contra outrem. 

A expressão dos afectos tornou-se tão abstracta, neste mundo de relações virtuais, que há jovens convictas de que a bofetada saída da mão de um namorado é prova de ciúme e, portanto, sinal de amor. 

As notícias sensacionalistas que descrevem homicídios como “crimes passionais” contribuem para esta grave mistificação. 

A educação para a cidadania não pode resumir-se a uma matéria teórica para decorar na escola: tem de se tornar exemplo diário. Comecemos pelo princípio: que exemplo de coragem, amor e solidariedade demos hoje?

inespedrosa.sol@gmail.com