Antes do 25 de Abril assisti a sessões da oposição democrática onde Soares discursou, depois entrevistei-o muitas vezes (para a imprensa e para a TV), almoçámos a sós ou acompanhados em diversas ocasiões (e quando ele ocupava diferentes cargos: líder da oposição, primeiro-ministro, Presidente da República).
Em princípios dos anos 80 convidou-me para um almoço que percebi ser uma espécie de pré-convite para eu ingressar no PS, em que se fez acompanhar por Jaime Gama.
Votei nele várias vezes, quer para o Governo quer para a Presidência.
Mas nunca tive demasiadas ilusões a seu respeito.
Sempre vi nele um homem centrado em si próprio, que se colocava num pedestal e agia muito em função dos seus interesses; não interesses materiais, note-se, mas interesses políticos.
No seu narcisismo egocêntrico, Mário Soares sempre disse mal de tudo aquilo em que não estivesse envolvido ou em que não fosse ele o foco das atenções.
Antes do 25 de Abril, disse mal de Salazar e de Marcello Caetano – o que era natural, visto Soares ser um democrata e eles serem os chefes máximos de um regime ditatorial.
Depois do 25 de Abril, Mário Soares disse mal do PCP e denunciou a tentativa de tomada do poder por parte dos comunistas – o que também era natural, pois não fazia qualquer sentido passarmos de uma ditadura a outra, de sinal contrário.
A seguir, Soares disse mal de Ramalho Eanes – o que continuava a fazer sentido, pois o general era o símbolo do poder militar e Soares queria implantar em Portugal um poder civil.
Mais tarde, após deixar a liderança do PS, Soares disse mal de Vítor Constâncio (e até conspirou contra ele) – o que mais uma vez se entende, pois Constâncio substituiu-o à frente do partido, e ninguém gosta que o sucessor tenha muito sucesso.
E, posteriormente, Soares disse mal de Sampaio e de Guterres – o que também se justifica pelas razões anteriores.
Quando era Presidente da República, Mário Soares disse mal de Cavaco Silva – facto inteiramente compreensível, pois em Portugal a Constituição estimula o chamado 'conflito institucional', ou seja, a guerra entre o Presidente e o Governo.
Após deixar Belém, Soares voltou baterias contra Durão Barroso, sobretudo depois de este se tornar presidente da Comissão Europeia – o que deve considerar-se igualmente normal, pois Soares tinha sido derrotado nas eleições para a presidência do Parlamento Europeu, não concebendo que Durão fosse votado para um cargo muito mais importante.
Actualmente, Mário Soares diz o pior possível de Passos Coelho – o que também não é de estranhar, pois Soares tinha conduzido um plano de austeridade com sucesso em 1983-85, e não contava que outro primeiro-ministro pudesse fazer igual ou melhor do que ele fez nessa altura.
Antes e depois do 25 de Abril, Mário Soares bateu em tudo e em todos: Salazar, Marcello, PCP, Eanes, Constâncio, Sampaio, Guterres, Cavaco, Durão Barroso, Passos Coelho…
Até já bateu naquilo que sempre tinha defendido – a democracia – ao dizer por mais de uma vez que o poder da rua deve sobrepor-se ao voto popular, e que o povo devia “correr com este Governo e com este Presidente da República”.
Apesar de conhecer bem Soares, isto foi uma coisa que nunca pensei ouvi-lo dizer.
Mas houve uma pessoa de quem Mário Soares não disse mal.
Ou melhor: só disse um bocadinho mal ao princípio – mas depressa passou a dizer bem.
Refiro-me a José Sócrates.
E porquê?
Porque Sócrates lhe ofereceu de bandeja uma candidatura à Presidência da República.
Sócrates deu a Soares aquilo com que ele sempre sonhou secretamente depois de deixar a Presidência: acenou-lhe com o regresso a Belém.
E Mário Soares caiu que nem um patinho.
Sócrates já sabia que Soares não tinha qualquer hipótese de ganhar – mas deu-lhe aquele presente envenenado para ter o fundador do PS ao seu lado e não contra ele, como acontecera com todos os seus antecessores.
Sócrates foi, assim, o único político que enganou Mário Soares – o que mostra a sua esperteza mas também é revelador da sua natureza.