2. Eles – protagonistas do descalabro do BES – são o rosto visível da tragédia portuguesa que hoje vivemos. O caso de Carlos Costa é diferente: Costa sofre dos vícios e das limitações próprias do poder político que o escolheu. O governador do Banco de Portugal é uma pessoa bastante séria e competente – mas preferiu não incomodar excessivamente os políticos que o escolheram ou com quem já trabalhou. Podemos censura-lo? Em teoria, sim: merece a nossa censura. Contudo, Carlos Costa seguiu os conselhos que nos dão todos os dias: nunca se revoltar contra o sistema. “Cuidado, não te metas com os grandes, com os poderosos: fazem-te a folha!”. No fundo, Carlos Costa tentou mudar as coisas muito subtilmente, muito devagarinho. Too little, too late: mudou para que tudo ficasse na mesma. Sem desagradar a ninguém com poder. É a velhinha regra da política portuguesa.
3. Dito isto, a verdade é que o observador mais atento da política portuguesa não pode ter deixado de notar que uma nova narrativa se começou a construir. Mesmo antes do arranque dos trabalhos do CPI: diabolização permanente de Ricardo Salgado, aparecendo como o responsável mor por todos os males e vícios (e, veremos, se ilegalidades e crimes) do Grupo Espírito Santos – com absolvição ou negação da responsabilidade de todos os demais, com José Maria RIcciardi.
4. Entendamo-nos: sob a óptica do Direito, as responsabilidades de Ricardo Salgado e Ricciardi serão apuradas nas instâncias competentes, designadamente nos tribunais, segundo uma tramitação própria e nos termos da lei e da Constituição. Contudo, há uma responsabilidade política e de gestão que é objectiva e indesmentível. Afinal de contas, meus caros, o BES colapsou – e o Estado, independentemente da solução mais ou menos airosa encontrada, teve de intervir e muitos pequenos accionistas perderam as poupanças de uma vida.
5. E será que um homem só conseguiria tudo e todos – com a oposição expressa e permanente de todos os seus colaboradores no grupo e de uma parte importante da sua família, accionista desse grupo? Será que Ricardo Salgado era tão maquiavélico que sozinho engendrou um esquema tão sofisticado, enganando tudo e todos – incluindo aqueles com quem trabalhava todos os dias, até mesmo o seu “núcleo duro” de trabalho?
6. Nos seus traços gerais – e simplificando para efeitos compreensivos – esta é a história que os membros da família pretendem vender: são todos muito bons, excepto Ricardo Salgado que é o “lobo mau” que conseguiu instrumentaliza-los para a prática do “mal”. Evidentemente que esta é uma história muito mal contada: Ricciardi, tanto quanto julgamos saber, nunca pediu a sua demissão quando já desconfiava das práticas menos claras e transparentes de Salgado. E se é verdade que precipitou uma quase crise de liderança no grupo Espírito Santos, é um facto irrefutável que firmou um acordo com Ricardo Salgado, reconhecendo a liderança deste – mediante a promessa de o vir a suceder, mais tarde, no cargo. Ou seja, Ricciardi, mesmo sabendo das práticas de gestão menos correctas de Ricardo Salgado, preferiu cobri-las, prolongá-las no tempo, em troca da liderança futura do grupo Espírito Santo. Objectivamente, Ricciardi é um dos rostos da tragédia do BES – assim como todos os que estavam dentro do grupo que sabiam ou desconfiavam dos actos de gestão ruinosos que estavam a ser praticados, conformando-se com eles.
7. Por último, importa dizer que Ricciardi é quem é graças a Ricardo Salgado. Que peso teria Ricciardi nos últimos anos se Ricardo Salgado não o tivesse escolhido para Presidente do BESI? Que influência teria tido Ricciardi nos últimos anos se Ricardo Salgado não fosse considerado o “Dono Disto Tudo”? Como poderia Ricciardi dominar o Sporting durante anos se Ricardo Salgado não fosse…Ricardo Salgado? Como poderia Ricciardi ter ligado a Passos Coelho para opinar sobre processos de privatizações (aliás, simpaticamente, desconsiderado pelo Primeiro-Ministro), se não fosse Ricardo Salgado? Ou seja, Ricciardi muito deve a Ricardo Salgado: foi uma escolha de Salgado e, objectivamente, é uma “criação” de Ricardo Salgado.
8. Percebemos a estratégia de defesa de Ricciardi – separar muito bem as águas e alegar, não sem criatividade estilística, um cenário de confronto total com Salgado – mas deve haver um mínimo ético de decência e verdade. No fundo do coração de Ricciardi, ainda jaz um sentimento de gratidão para com Ricardo Salgado. Ainda que ténue.