Falamos de Carlos Dias e da marca Roger Dubuis, que criou praticamente do nada. A indústria relojoeira suíça andava então nas ruas da amargura, asfixiada pela nova moda dos relógios de quartzo lançada pelos japoneses nos anos 70 e onde a pilha se sobrepunha aos complexos movimentos mecânicos. A grande maioria dos mestres relojoeiros arrastava-se na miséria e alguns sobreviviam à custa de pequenas oficinas de vão de escada.
Foi aqui que Carlos Dias espreitou a oportunidade. Conheceu o relojoeiro Roger Dubuis e daí nasceu uma amizade qu e deu frutos. Carlos Dias resolveu dar à marca o nome do amigo. “No início, não me aconselhavam a pôr aquele nome porque era impronunciável. Dubuis, por exemplo, confundia-se com Dubois, mas eu, à força de ouvir tantas críticas, decidi avançar porque talvez isso fosse mais uma razão para atrair a atenção das pessoas. Além disso, na Suíça era mais credível o nome dele como marca relojoeira do que o meu”, explica o empresário.
O sucesso da Roger Dubuis
No arranque faziam ainda poucas peças, desenhadas por Carlos Dias e trabalhadas pelo mestre relojoeiro Roger Dubuis e outros seus assistentes. Até que um curioso episódio viria a mudar o percurso da própria empresa. Num dia 23 de Dezembro, Carlos Dias recebeu o telefonema de um director de hotel seu amigo, que lhe comunicou que o sultão do Brunei estava em Genebra e que tinha visto um relógio seu pelo qual se apaixonara e que estava decidido a adquirir.
Carlos Dias, em arrumações para fechar para férias a pequena manufactura na véspera de Natal, comunicou então que isso era impossível porque não tinha qualquer relógio disponível para venda. “Não me diga isso – retorquiu o director do u hotel. O sultão é um grande coleccionador e eu não o posso desiludir. Ele vai mesmo agora para aí”. Quando chegou ao pé de Carlos Dias, o sultão viu que, de facto, não havia nenhum relógio para vender. Ao ver a sua cara de tristeza, Carlos Dias propõe-lhe a única solução possível: oferecer-lhe o relógio que ele próprio tinha no pulso. Reconhecido, o sultão faz-lhe então uma encomenda, mas avisa-o que só está interessado em relógios com o número 1. Assim será, responde Carlos Dias, acrescentando que na próxima série de 25 iria reservar o número 1 para ele. “25? Faça antes 28 de cada série. Esse é o número da sorte”, propôs o sultão. De facto, a partir desse dia Carlos Dias ganhou um dos seus maiores clientes e ainda o facto de o 28 se ter tornado o número talismã para a Roger Dubuis.
Foram aumentando as encomendas, a fama foi crescendo e em pouco tempo a marca desfilava no Salão de Alta Relojoaria, em Genebra, ao lado das maiores referências mundiais. O segundo passo, mas igualmente importante, foi a construção de uma moderna e sofisticada manufactura. “Perguntam-me sempre onde consegui o dinheiro para arrancar e eu respondo que os três grandes sucessos de marcas conhecidas na relojoaria foram obtidos por aquelas que começaram quase sem dinheiro; nós, a Frank Muller e a Richard Mille”, adianta Carlos Dias.
A afirmação de um estrangeiro num meio muito conservador e fechado como é o universo da alta relojoaria suíça não foi fácil, mas a frieza dos números fala por si: a fortuna de Carlos Dias chegou a estar entre as 300 maiores da Suíça.
A venda da marca
Perante tamanho sucesso, a notícia da venda da Roger Dubuis, há cinco anos, ao grande grupo suíço Richemont na área dos artigos de luxo, surpreendeu tudo e todos. “Comecei a ver desenhada, em 2007, uma conjuntura de crise internacional e pensei que tudo iria ‘explodir’ de um momento para o outro. Depois, sentia-me também muito cansado devido ao esforço gigantesco que despendi para construir a marca a partir do zero. Daí a minha decisão em vender”, explica o empresário, acrescentando que chegou a ser convidado para ficar como CEO do grupo Richemont. “Não aceitei”.
Deixado para trás o universo da alta relojoaria, que lhe rendeu centenas de milhões de euros, Carlos Dias é tomado por uma outra paixão, esta bem mais antiga e que vem dos tempos em que trabalhou em Paris, então na cadeia de hotéis Ramada, onde se ocupava da compra de produtos como o vinho, entre outros. “Todos os dias recebia os melhores vinhos do mundo para provar e, eventualmente, comprar. Fui assim recebendo uma educação que normalmente custa muito dinheiro e à qual eu não teria acesso não fosse o cargo que desempenhava. Comecei a perceber de vinhos e foi aí que nasceu essa minha outra paixão para além da relojoaria”.
Depois da relojoaria, os vinhos
Em 2009 quer dar início a esta nova fase da sua vida profissional e, amante que é dos vinhos de Bordéus e da Borgonha, fica tentado a comprar um castelo na primeira destas regiões, em Pauillac. Não o fez e voltou as suas atenções para o Alentejo e para o Douro. Entretanto, um telefonema do irmão que vive em Portugal abriu-lhe uma segunda hipótese: estava à venda uma propriedade na Bairrada, as Colinas de S. Lourenço. Sendo uma zona que muito aprecia, compra a quinta, a primeira das oito que hoje possui. A sua estratégia era simples; apostar também no Dão e no Minho, na região dos vinhos verdes, diversificando assim o seu portfólio e as oportunidades de negócio.
Nascia aqui o grupo Idealdrinks. Das Colinas de S. Lourenço saem vinhos como o Colinas (brancos, tintos, rosés e espumantes Brut), o S. Lourenço e o Principal, cujo Grande Reserva Tinto 2009 foi considerado um dos 10 melhores do mundo pela prestigiada revista italiana Spirito di Vino. Com estes resultados, a entrada de Carlos Dias no mundo dos vinhos continuava a demonstrar o seu ADN de grande empresário.
A paixão que põe ao mostrar o seu trabalho não deixa dúvidas quanto ao seu envolvimento neste novo projecto. Na Quinta da Pedra (entre Monção e Melgaço), comprada em 2010 à UNICER, os olhos brilham quando apresenta as suas ‘criações’. O portão da quinta em vidro, os vasos u feitos no Mónaco, o desenho da adega (feito pela sua mão), o enólogo por ele escolhido, Pascal Chatonnet, e que considera “um dos dois ou três melhores do mundo”, tudo revela o cuidado do proprietário. Mas não é tudo: “A escolha do perfil dos vinhos sou eu quem a faço”, revela Carlos Dias com orgulho.
Alvarinho, Loureiro e aguardente
Exigente, minucioso, procura nos seus colaboradores total empenho. Em troca, nada lhes falta. À Quinta da Pedra também não. Junto à adega onde são feitos os vinhos com a casta Alvarinho e os vinhos com a casta Loureiro do Paço de Palmeira (perto de Braga), ergue-se um local de culto: a destilaria.
“Sempre sonhei fazer aguardentes, mas tinha de apostar no melhor”. E o melhor é Gianni Vittorio Capovilla, considerado ‘o Papa dos destilados’. “Ele nunca antes tinha trabalhado para outrem e andei um ano atrás dele para o convencer. Consegui”. Toda a instalação, com os sumptuosos alambiques que trabalham essencialmente em ‘banho Maria’, custou um milhão de euros. Por aqui destila-se bagaço e frutas e como em todo o processo não há qualquer chama, não há metanol, o produto final chega à garganta quase como veludo. “Talvez para o ano já esteja no mercado”.
Rumamos a outro santuário, mais precisamente ao Paço de Palmeira, perto de Braga, onde Carlos Dias pretende fazer os melhores vinhos com as castas Alvarinho e Loureiro. Lugar idílico e com grande história, é daqui que saem as uvas da casta Loureiro para fazerem o Eminência e o Royal Palmeira. Grandes vinhos que para Carlos Dias são uma forma de valorizar o património português e um meio de lutar “para que Alvarinhos e Loureiros não sejam vistos como refrescos”.
A fama destes néctares já passou fronteiras e Angola tem sido uma forte aposta. A Idealdrinks já aí tem os seus armazéns próprios, máquina de distribuição e lojas. Entretanto, a Ásia é outra das metas e Macau, Hong Kong, Xangai e Pequim já bebem estes vinhos.
O provável regresso à relojoaria
Mas os negócios deste empresário passaram já para outros campos e a saúde é um dos mais importantes. Um hospital privado em Coimbra, centros de saúde e empresas de software clínico fazem já parte do grupo ‘mãe’, a Ideal Tower.
Com todo um império já montado, Carlos Dias parece anunciar outra surpresa, outro volte-face na sua vida. No seu íntimo, o ‘bichinho’ da relojoaria continua bem vivo. Por momentos interrompe o discurso dos vinhos e fala de relógios, de toda uma indústria que, diz, vai voltar a passar por momentos difíceis como os que a assolaram nos anos 70. Só que agora o responsável não é o quartzo ‘made in Japan’. São os computadores. “Os mestres relojoeiros estão a perder o seu lugar preponderante. A construção dos movimentos faz-se, hoje, com recurso a programas de computadores, a simulações, e o engenho e a arte vão-se perdendo correndo o risco de não deixar memória. Um movimento que antes demorava pelo menos dois anos a trabalhar e a ensaiar, hoje faz-se num ápice e todos aqueles ensaios para testar a fiabilidade do mecanismo já estão feitos nas simulações. Infelizmente, hoje, mais importante do que um relojoeiro é o engenheiro programador. Actualmente, um relógio é muito mais do que uma peça para ver as horas. Não é preciso andar com um no pulso. Há-os por todo o lado, nas ruas, nos automóveis, nos telemóveis. Um relógio é, acima de tudo, uma peça de culto, a afirmação do status de cada um e não uma mera máquina de medir o tempo”. A forma apaixonada como fala e defende todo um sector que pode estar em perigo no que tem de genuíno, parece levantar um véu. Quererá Carlos Dias regressar ao universo da alta relojoaria?
“Tenho sido convidado para regressar, mas só o farei se me sobrar algum tempo para, de novo, me dedicar a ela de alma e coração”. Depois, quase como um desabafo dito em surdina, acaba por confidenciar: “Há já dois meses que comecei a desenhar um projecto de relojoaria e se eu conseguir tempo, vou mesmo avançar”.