Deveria, digo bem, mas, face à herança de desorientação e caos deixada por 2014, abundam decerto as razões para duvidar que isso seja possível – até no terreno religioso onde o Papa ocupa uma posição central. Por muito inspiradora e admirável que seja a figura de Francisco, ela parece demasiado solitária neste mundo de dirigentes pusilânimes ou simplesmente empedernidos perante os desafios – velhos e novos – que lhes são colocados. Resta-nos, então, deixar cair os braços e submeter-nos a um fatalismo globalizado?
A transição de um ano para outro suscita sempre balanços e projecções mais ou menos marcados pela velha máxima de Gramsci ciclicamente repetida: pessimismo da razão, optimismo da vontade.
Mas há porventura muito tempo que, na passagem ritual do ano velho para o ano novo, a paisagem planetária não terá oferecido tantos motivos de descrença e perda de referências, com o agravamento das catástrofes humanitárias (epidemias como o ébola ou o alastrar das vagas de refugiados), o ressurgimento impetuoso da barbárie (com o chamado Estado Islâmico), a desordem geopolítica e os novos apetites imperiais (designadamente depois da agressão da Ucrânia pela Rússia) ou a erosão acelerada de projectos que se pretendiam federadores de uma vontade comum, cedendo às tentações retrógradas do nacionalismo e à xenofobia das forças mais reaccionárias e extremistas (como verificamos em tantos países europeus).
Sobre tudo isto o Papa Francisco teve sempre uma palavra oportuna e vigorosa, culminando na veemência cáustica absolutamente inédita como enfrentou uma Cúria romana mumificada, que ouviu as suas admoestações com semblantes carregados e hostis.
Os mais cépticos ou cínicos dirão: palavras, palavras… Mas, precisamente, é hoje mais importante do que nunca reabilitar a força regeneradora das palavras. Em especial, quando elas não se confinam a uma retórica vazia, quando inspiram e comandam a acção, como Francisco tem vindo a fazer no interior da Igreja – apesar da agressividade indisfarçada dos que contra ele conspiram e o querem silenciar.
É sintomático que mesmo aos olhos dos agnósticos, entre os quais me incluo, Francisco tenha assumido uma relevância sem paralelo com nenhum dos seus antecessores (exceptuando, porventura, o revolucionário Papa do Concílio, João XXIII).
Num mundo cada vez mais descrente da força da vontade colectiva e emparedado na ausência de alternativas, substituídas pelo integrismo dogmático, Bergoglio é um homem que ousa remar contra a maré do chamado 'realismo' do pensamento único. E ainda que excessivamente exposto na sua solidão vaticânica e correndo o risco de ver crucificada a sua ousadia, ele interpela-nos a não renunciar a um desejo múltiplo de reinvenção: humana, social, económica, política, espiritual.
Porque a contrapartida a esse desejo, que a soberba dos cínicos reduz à categoria imprestável de 'idealismo', é o caos que enfrentamos no horizonte mais previsível de 2015. Onde está, afinal, o realismo?
O nosso horizonte imediato é Portugal e a Europa – e, de facto, a evolução dita natural das coisas aponta para o estertor das esperanças que ainda restam. Apenas um grande sobressalto nos fará sair do círculo vicioso dessa Europa fechada sobre si mesma e indiferente ao sofrimento do mundo – que o Papa Francisco duramente invectivou na sua recente mensagem ao Parlamento de Estrasburgo -, dessa Europa refém do mito castrador da austeridade e dos dogmas orçamentais como único caminho possível – embora comprovadamente regressivo e sem perspectivas.
2015 é um ano de eleições gerais em oito países europeus, incluindo a Grécia, o Reino Unido, Portugal e Espanha. E não falta quem tema, a começar pela nossa bem conhecida troika, as repercussões de eventuais vitórias da esquerda radical do Syriza grego e do Podemos espanhol devido às suas posições antiausteritárias e a favor da reestruturação da dívida (embora não advogando a saída do euro, ao contrário, por exemplo, do PCP). Mas se tal for a derradeira forma de a Europa ser submetida a um tratamento de choque – o único que, pelos vistos, poderá abalá-la, sem cair nas malhas do eurocepticismo xenófobo – por que não encarar positivamente essa hipótese? Se, conforme a inspiração de Bergoglio, é preciso agitar as águas para escapar ao pântano onde nos afogamos, vamos a isso!