Ainda chegam cegonhas de França

Só aos dez anos de idade fui informada de que, afinal, os bebés não vinham de França no bico de uma cegonha.

A preciosa informação foi-me fornecida por uma colega de turma que ia casar aos doze com o homem que a família lhe escolhera, pelas tais razões ditas 'culturais' que continuam a justificar a tortura e a opressão das meninas.

Como só teria mais dois anos de juventude, a infeliz maquilhava-se estrondosamente, bamboleava-se nuns sapatos vertiginosos e, nos intervalos das aulas do então chamado ciclo preparatório, ia para o quadro desenhar a giz os órgãos sexuais e explicar às parvinhas que nós éramos (ela chamava-nos outra coisa, num vernáculo que não vem ao caso) como é que as crianças eram feitas.

O curso foi tão assustador e bem sucedido que as alunas chegaram ao fim sem vontade de experimentar aquelas actividades até, pelo menos, aos trinta anos. O desaparecimento da pobre noiva e a evolução da adolescência dissolveram o trauma.

Mas creio que dificilmente recuperamos das convicções criadas na primeira infância – e a França continuou a ser para mim o lugar mágico de onde, nesse início da década de 70, chegavam livros, canções e filmes e proibidos.

O meu pai atirou-me pela janela fora o ‘Je t'aime, moi non plus’ de Serge Gainsbourg, mas fez-se fotografar em Paris diante de um muro onde estava escrito “Soutenez les déserteurs portugais”.

A minha mãe comprava uma revista francesa que falava de democracia, direitos das mulheres, reivindicações.

Meti-me na Alliance Française para entrar nessa língua onde se usavam palavras então interditas em Portugal. E devo ao curso da Alliance a capacidade de elaborar textos com preâmbulo, desenvolvimento e conclusão, virtudes cartesianas de que a educação lusitana para o improviso e a criatividade desvairada não cuidavam.

Tive também a sorte de encontrar no liceu, já depois da Revolução, uma professora de francês – Laurinda Bom – consciente de que para aprender a sério uma língua é preciso mergulhar na sua cultura, conhecer os seus escritores, pintores, músicos, dramaturgos e cineastas.

Ora a França sempre foi abundante e variada em artes e artistas. Passou agora de moda – excepto, parece-me, no que se refere à moda propriamente dita, catapultada nas últimas décadas a fenómeno cultural por gente que parece ter regressado à era da leitura inscrita em trapos.

Filmes sobre Yves Saint-Laurent, por exemplo, contei dois nos últimos tempos, quando há tanto livro de Balzac que daria excelente cinema. Mas enfim…

O anunciado fecho do Instituto Francês em Lisboa, a concretizar-se, significará que cada vez menos gente aprenderá a língua, perdendo assim o acesso directo àquela que continua a ser uma das mais vibrantes e cosmopolitas culturas do mundo.

As entidades oficiais alegam que se trata apenas de uma mudança de casa, e que as aulas fornecidas pelo Instituto passarão agora para a embaixada. Mas deixará de haver a mediateca, a livraria, o auditório. E a saída de uma zona central e com estacionamento, para uma outra onde é complicadíssimo estacionar, significará também certamente uma perda de clientela.

Circula na internet uma petição para salvar o Instituto Francês. A bem das cegonhas que nos têm trazido tantas coisas boas no bico.  

inespedrosa.sol@gmail.com