Nova vida para os Sem-abrigo

A noite está fria, com os termómetros a marcar menos de dez graus, mas em frente à Igreja dos Anjos agradece-se apenas “que não esteja a chover”, como diz Filomena, voluntária do projecto Nova Vida, de inserção de sem-abrigo da Junta de Freguesia de Arroios. Todas as quintas-feiras, ela e outros elementos da equipa percorrem…

Nova vida para os Sem-abrigo

Debaixo de uma arcada está o senhor Rui, de roupas coçadas e rosto engelhado. É um dos 21 sem-abrigo desta zona da capital, dos 852 sinalizados no início do ano pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com a qual a Junta tem um protocolo.

Rui já é conhecido. “Encontrámos o senhor Rui na rua com a companheira, que entretanto colocámos num quarto da Segurança Social”, lembra Hugo Marques, coordenador do projecto. Para trás, a ex-companheira deixou uma história de violência doméstica e de alcoolismo. A história de Rui, de 58 anos, é uma história comum. Tudo estava bem: tinha trabalho na construção civil e uma companheira, da qual tinha uma filha. Perdeu o trabalho e a família e passou a dormir ao relento, há cerca de três anos. 

Desta vez, não está sozinho. Na mesma arcada 'vive' António, um africano que começou a dormir na rua “há três meses”, assim que chegou a Portugal. A vinda do forasteiro não é bem-aceite por Rui, “muito zeloso do seu espaço” – e há problemas entre os dois.

Ambos fazem parte da população alvo do projecto Nova Vida, iniciado há dois meses na nova área de Arroios que passou a abranger zonas das antigas freguesias da Pena e dos Anjos (da qual Arroios herdou o projecto). O objectivo é ajudar os sem-abrigo a reinserirem-se na sociedade. 

Com Hugo e Filomena estão ainda mais dois elementos do projecto: Margarida, técnica de acção social, e Maria Inês, estagiária. Todos estão devidamente equipados com coletes verde-fluorescente e identificados como 'equipa de rua'. “Fazemos o percurso e conversamos com os sem-abrigo todas as quintas-feiras”, explica Hugo. 
O percurso vai variando – há dois definidos: o primeiro é o do bairro dos Anjos e Pena (que parte do Largo do Intendente, passa pela Rua Nova do Desterro e pela Rua do Saco; pelo Paço da Rainha; segue pela Rua de Sta. Bárbara e termina numa das avenidas que concentram mais sem-abrigo em Lisboa, sob as arcadas dos prédios, a Av. Almirante Reis).

Na quinta-feira em que o SOL acompanhou a equipa, fez-se outro percurso, o do bairro São Jorge de Arroios. A acompanhar os elementos da Junta estão também duas agentes da PSP, à paisana. É de novo Hugo quem explica os motivos: “É uma medida de segurança. Muitos sem-abrigo têm problemas psiquiátricos, outros são problemas de alcoolismo. É possível que tentem agredir-nos”. Foi, aliás, o que aconteceu há cerca de uma semana, em que um sem-abrigo da Av. Almirante Reis atirou uma cadeira aos elementos do Nova Vida.
 
Corrida de longo curso

É cada vez mais frequente encontrar novos sem-abrigo. “São pessoas que ficaram sem trabalho, outras tiveram problemas com a família”, conta Hugo. 

E também já aparecem famílias. “Há pouco tempo, detectámos uma família em que os dois membros do casal passaram a dormir na rua, após ficarem desempregados. Os filhos foram entregues aos avós”, conta a voluntária Filomena.

De volta ao senhor António, a equipa conseguiu convencê-lo a ir ao gabinete de apoio no dia seguinte, sexta-feira, para tratar do seu pedido de Rendimento Social de Inserção (RSI). 

A próxima paragem é no Regueirão dos Anjos, onde está enrolada num saco-cama a 'ciganita', como é conhecida entre os técnicos. “Tenho sede!”, grita, espreguiçando-se a rir. Perguntam-lhe: “O que estás aqui a fazer?” A mulher, que recusa dizer o nome verdadeiro, revida: “Então e não trazem nada para comer?” É Margarida quem lhe responde: “Já sabe que não trazemos nada”. 

O facto de aparecerem de mãos vazias torna a aproximação aos sem-abrigo mais difícil – ou lenta, como prefere Hugo: “O nosso trabalho é social e requer tempo”, comenta. E brinca: “Isto não é uma maratona. É uma corrida de longo curso”. 

A equipa segue em direcção à Rua Passos Manuel, em Arroios, que desemboca no Jardim Constantino. Logo no início da rua, há outro sem-abrigo que aparenta não ter mais de 40 anos, embrulhado em mantas. Mas manda os técnicos embora, não está “para conversas”. Como muitos sem-abrigo de Lisboa, “tem problemas psiquiátricos”, explica Hugo. E os serviços continuam sem resposta: “Encaminhamos os casos mas depois as respostas não funcionam”.

Perante a recusa do sem-abrigo em falar, os elementos do Nova Vida seguem, deixando apenas a indicação de que há refeições no Centro Local de Apoio aos Sem-Abrigo de Arroios, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que serve por dia 60 jantares. “Nunca forçamos ninguém a falar connosco. É necessário respeitar as pessoas e também esperar que confiem em nós, que vejam que vamos aparecendo”, diz Hugo.

Também na Rua José Estêvão, onde está a ser distribuída comida, os sem-abrigo recusam falar com os voluntários. Voltarão noutro dia. 

A noite terminará contudo com uma boa notícia. Confirma-se a ausência do senhor Joaquim, numa arcada da Rua António Pedro, junto ao BPI. Ainda se vêem as caixas de cartão que, até ao dia anterior, serviram para o proteger deste frio de Dezembro: “Estava há anos aqui, mas conseguimos convencê-lo a ir para um quarto da Comunidade Vida e Paz”. As arcadas têm agora um novo hóspede de cerca de 50 anos, Arnaldo. “O senhor Joaquim já não está, pois não?”, pergunta Filomena. O homem confirma. E conta que não tem qualquer rendimento certo . “Dá-me autorização que lhe trate do processo [de RSI]?”, aproveita Hugo. Arnaldo anui. “Sabe que o senhor Rui foi ontem viver para um quarto da Comunidade Vida e Paz? Veja lá se faz o mesmo”, aconselha Hugo.

sonia.balasteiro@sol.pt