Urgências com equipas exclusivas

Governo quer equipas só para as urgências a partir de Julho. Mas o perito que elaborou o estudo a pedido do ministro avisa que só funcionarão se os hospitais puderem recrutar médicos com base no perfil e não através de concursos e lhes pagarem salários mais elevados.

Urgências com equipas exclusivas

Só quando os hospitais  começarem a contratar directamente os médicos que considerem ter perfil para fazer urgências, sem necessidade de recorrer a concursos, e lhes pagarem mais é que o problema de falta de resposta destes serviços terá fim. A garantia é dada pelo perito médico que, a pedido do ministro Paulo Macedo, elaborou um relatório sobre as urgências e que levou o Governo a aprovar, há cinco meses, um conjunto de alterações para estes serviços, a aplicar já a partir de Julho deste ano.

José Artur Paiva, que liderou a equipa de 11 peritos nomeados em 2011 por Macedo, elogia o facto de,  no despacho (publicado a 11 de Agosto de 2014), o Governo ter definido que os hospitais têm de constituir equipas dedicadas apenas às urgências, como era recomendado no relatório. Mas garante que para funcionarem têm de ser alvo de regulamentação e legislação suplementar – o que, nota, ainda não aconteceu «Não basta criar equipas, é preciso regulamentação para que os hospitais possam recrutar individualmente os profissionais para as urgências, sem dependerem de concursos regionais ou nacionais», explica ao SOL  José Artur Paiva, considerando que tem também de ser definida uma «remuneração acima do que é normal», por ser uma função extremamente «desgastante».

O médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto   –  que coordenou a comissão que elaborou o documento Reavaliação da Rede Nacional de Emergência e Urgência, entregue ao Governo em 2012 –  defende que só com este tipo de recrutamento fica assegurado que quem presta assistência nas urgências tem  o perfil adequado.

«É ainda preciso que estes médicos sejam alvo de formação e que a Ordem dos Médicos reconheça a Medicina de Urgência como uma especialidade, sub-especialidade ou competência», explica.

’Batemos no fundo’, diz bastonário

Ao SOL, o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, adianta que a instituição está neste momento a «avaliar  juntos dos colégios de especialidade a proposta de criação de uma competência em Medicina de Urgência» – o que permitirá atribuir um estatuto aos médicos que tenham formação e conhecimentos específicos na área. «Mas não foi a falta de especialização que colocou as urgências neste caos», contrapõe o bastonário, defendendo que o problema resulta de o Ministério da Saúde  ter proibido os conselhos de administração de contratarem. «Há profissionais disponíveis, mas não podem ser contratados», afirma, sublinhado que, além disso, «entre Março de 2013 e Março de 2014, houve uma redução de 420 camas hospitalares».

Para José Manuel Silva, o cenário vivido nas últimas semanas –  com esperas nas urgências de mais de 18 horas e  doentes a terem de ficar em macas dos bombeiros – revela o que se passa. «Quando os hospitais não têm macas para os doentes, é porque batemos no fundo», alerta, considerando ser urgente reforçar as equipas.

Mas para Artur Paiva a falta de resposta  – que, admite, se agrava sazonalmente» – poderá ser resolvida com uma alteração do modelo de gestão, criando-se as tais equipas próprias. «Há um problema estrutural», defende,  lembrando que só assim as urgências poderão ser devidamente geridas e responder rápida e eficazmente a situações como as dos últimos dias em que o frio e a gripe levaram milhares aos hospitais.

Aliás, no documento entregue ao ministro da Saúde, os especialistas garantem que actualmente a «urgência é um serviço de todos e de ninguém» e consideram que este novo modelo libertará os médicos das outros serviços e levará à  «diminuição das horas-extra».

Tutela impõe formação especial

No despacho publicado em Agosto, o Governo criou um  Sistema Integrado de Emergência Médica, definindo o papel e as características de cada um dos intervenientes no atendimento de doentes urgentes, desde o INEM aos hospitais, passando pelas linhas  telefónicas de saúde pública.

Quanto às unidades hospitalares, o Executivo refere que os conselhos de administração têm agora de promover «equipas de profissionais de saúde dedicados à urgência, ou seja, profissionais que trabalhem na sua totalidade ou maioritariamente apenas no serviços de urgência, sobretudo nos períodos do dia de maior procura». Ao mesmo tempo, estipula a especialização, que passa a ser obrigatória para os profissionais destas equipas. Todos os médicos e enfermeiros têm de ter formação em suporte avançado de vida e pelo menos 50% da equipa tem ainda de possuir mais formação (como, por exemplo, em ventilação, transporte de doentes críticos, gestão de stresse e de conflitos, comunicação do risco e de más notícias). Tem ainda de ser garantido que a metade dos médicos da equipa é atribuída pela Ordem a competência em Emergência Médica.

Os hospitais terão de pôr em prática estas medidas até dia 30 Junho,  dispondo depois de um prazo de três anos para concluir a formação dos profissionais.

Apesar de há muitos anos se falar em equipas especializadas e de ter havido legislação nesse sentido, só 5% das unidades de saúde do país as introduziu, segundo o relatório de José Artur Paiva. A maioria (49%) usa modelos mistos, com alguns profissionais exclusivos para a urgência e outros que só ali vão fazer turnos (os chamados ‘bancos’). Os restantes estabelecimentos (46%) continuam a preferir não ter um grupo único, recorrendo antes a médicos dos serviços hospitalares para atender os casos urgentes.

No entanto, as  equipas exclusivas não são uma medida pacífica. O médico Luís Campos – que há dois meses, a pedido da Direcção-Geral de Saúde, elaborou um documento intitulado Roteiro de Intervenção em Cuidados de Emergência e Urgência – alerta que é  necessária alguma prudência.  «Deve haver uma parte da equipa fixa, pois assegura a continuidade   assistencial e de gestão. Mas outra parte não deve ser exclusiva, pois é importante não tirar os internistas das urgências», diz ao SOL,  acrescentando que é preciso, por outro lado,  «evitar o burn-out [esgotamento físico e mental] associado ao desgaste do trabalho na urgência».

Centros de saúde sem eficácia

Considerando que o problema das urgências «é complexo», Luís Campos sugere que se adopte um mecanismos de atendimento especial para os casos menos urgentes. «Os hospitais devem atender os doentes com pulseira verde e azul num serviço à parte, com uma equipa própria, diferente da que dá assistência aos mais graves», defende, explicando que este modelo é já usado no Hospital S. Francisco Xavier, em Lisboa, e permite  retirar do «hospital os 40 % de doentes» que apenas necessitam de ser vistos por um médico. «E são estes que ficam horas à espera», nota.

Numa questão todos os especialistas estão de acordo: é urgente apostar  nos cuidados de saúde primários, melhorando a resposta dos centros de saúde e divulgando-a junto da população, pois grande parte dos portugueses recorre sem necessidade aos hospitais.

Segundo o relatório de  José Artur Paiva só 54% dos casos atendidos em 2010 eram «urgentes ou muito urgentes».  Luís Campos concorda que o recurso às urgências – que em 2012 registaram sete milhões de entradas – é excessivo. Um excesso visível pelo facto de 41,8 % dos casos atendidos no primeiro semestre de 2014 não serem urgentes. O médico admite, porém, que «a existência de cerca de um milhão de habitantes sem médico de família e a falta de acesso a estes clínicos em tempo adequado» impede o sucesso dos centros de saúde. Já os hospitais, descreve, «estão abertos 24 horas por dia e têm exames complementares, especialistas disponíveis na hora e, muitas vezes, até estão próximos» da residência dos utentes.

catarina.guerreiro@sol.pt