Não se tratou apenas de um crime hediondo contra a liberdade de expressão. Foi também um testemunho concludente de que o direito à sátira e à provocação iconoclasta dos totens considerados intocáveis pelos diversos fundamentalismos (com destaque para o mais irredutível de todos, nos tempos actuais: o islamismo) representa uma fronteira crucial entre a civilização e a barbárie.
A capacidade de tolerância ao humor – mesmo o de vocação assumidamente corrosiva, ofensiva ou de gosto duvidoso – distingue os padrões civilizacionais e culturais mais seguros do seu património daqueles onde a caricatura de um ícone religioso ou político, seja Maomé ou qualquer ditador instalado num pedestal majestático, constitui uma agressão punível com a morte ou a prisão.
Sintomaticamente, o Presidente turco Erdogan, refém de uma crónica obsessão egocêntrica, decidiu perseguir implacavelmente os cartoonistas que se têm atrevido a ridicularizar a sua soberba autoritária e a pretensão de passar por discípulo iluminado do Profeta. Apesar de membro da NATO e ainda candidata a membro da União Europeia, a Turquia vem exibindo uma ambiguidade cúmplice no relacionamento com o chamado Estado Islâmico, responsável pelas indescritíveis atrocidades cometidas nos territórios iraquiano, sírio e curdo.
Outro caso revelador, no domínio da liberdade de expressão, embora não propriamente da sátira: o jornalista e romancista argelino Kamel Daoud, autor de um dos romances mais surpreendentes de 2014, Mersault, Contre-Enquête, inspirado no Estrangeiro de Camus, acaba de ser ameaçado com uma fatwa (condenação à morte) decretada por um chefe religioso integrista, sob a acusação de apostasia e heresia. Note-se que Daoud é não só declaradamente laico e estranho aos preceitos religiosos muçulmanos, como um dos críticos mais lidos e respeitados do regime argelino (supostamente também laico). Estaremos perante uma reedição da célebre fatwa lançada por Khomeini contra Salman Rushdie por causa dos seus Versículos Satânicos? Mas enquanto Rushdie beneficiou da protecção da polícia britânica durante longos anos, Daoud não parece desfrutar das mesmas garantias por parte das autoridades argelinas…
É conhecida a paranóica (e homicida) susceptibilidade dos integristas muçulmanos a qualquer figuração de Maomé, especialmente em versão humorística. Depois do caso das caricaturas na imprensa dinamarquesa, cujos autores foram ameaçados de morte, a ousadia foi retomada, precisamente, pelo Charlie Hebdo, alvo já de um atentado em 2011 que destruiu parte das suas instalações.
Mas esse precedente não chegara para intimidar uma redacção cujo director, Charb, afirmou preferir “morrer de pé do que viver de joelhos”. Foi o que acabou por acontecer. Passado um ilusório tempo de acalmia, os ‘loucos de Alá’ recorreram a um massacre em regra, seguindo a inspiração do Estado Islâmico, e que é o mais grave acontecimento no género registado em França desde 1961, na época já distante da guerra da Argélia…
Entretanto, o contexto histórico mudou – e, agora, está em causa a capacidade francesa e europeia de enfrentar a onda crescente de xenofobia antimuçulmana (associando a generalidade dos muçulmanos ao fanatismo islamista) que cresce um pouco por toda a parte, dos países nórdicos ao Reino Unido e, recentemente, à Alemanha.
A resposta cívica a essa onda de crispações corre o risco de desvanecer-se sob a influência do terror que pretende atingir não apenas o direito à liberdade e ao humor – do qual o Charlie Hebdo se tornou um símbolo – mas os valores essenciais de tolerância e convivência entre comunidades que, apesar de tudo, definem o património civilizacional europeu.
Existe uma clara convergência de interesses entre os islamistas fanáticos e as forças europeias xenófobas e extremistas que visam a desintegração desse património, através de uma sociedade policiada pelo medo e alimentada pelo ódio da diversidade, da diferença. Uns e outros tenderão a radicalizar-se cada vez mais, no cenário de uma ‘guerra civil’ que corresponde aos objectivos estratégicos dessa Internacional da intolerância e da barbárie. É preciso combater activamente contra ela. “Je suis Charlie” não pode ser apenas uma figura de retórica.