É natural que uma mulher pense cem vezes antes de fazer queixa do seu agressor e acabe por decidir que é melhor continuar a ser espancada. Não é falta de coragem: é amor à vida e aos filhos.
Muitas das 42 mulheres mortas no ano passado tinham apresentado queixa. Um dos homicidas já tinha sido condenado – mas com pena suspensa. Outro estava a ser julgado, e aproveitou um dia de adiamento do tribunal para ir matar a ex-mulher. E assim por diante.
Quando a agressão chega à ameaça de morte e a mulher pede ajuda às instituições, tiram-na de casa e põem-na num abrigo – longe do seu dia-a-dia, impedida de trabalhar, obrigada a mudar as crianças de ambiente e de escola, etc.
Ou seja: a violência física combate-se através de outras violências. Porque há-de o agressor ficar na sua vidinha e a agredida ter de se reinventar? Ninguém responde a esta tão simples pergunta.
Certo é que, se uma mulher mudar a fechadura por medo de ser assassinada, tornar-se-á suspeita, e eventualmente até arguida. A difamação é um traço comum nos agressores.
O jornal Público do passado dia 5 narra este depoimento prestado em tribunal por um homicida, antes de ter assassinado a tiro a ex-sogra e a tia, e de ter falhado a morte da ex-mulher e da filha: “Um e outro jurámos ser fiéis até que a morte nos separasse. Não sei por que ela quis o divórcio. Está deprimida e inventa coisas”.
Há quem se comova com este tipo de declarações. Coitadinho, gostava tanto dela. Calhando, ela bebia/andava com outros/era má mãe. Crime passional, pois. Agora, depois de cinco anos de perseguição à ex-mulher e à sua desafortunada família, este homem está, diz-se, em prisão preventiva. Preventiva de quê, se já matou?
O Partido Socialista anuncia entretanto que arrancará o ano parlamentar com projectos de combate a este tipo de violência – designadamente, através de procedimentos que permitam a regulação provisória do poder paternal.
Boas intenções, uma vez mais. Não estou a ver que um agressor se acalme na sequência de uma decisão judicial rápida que o obrigue a ficar sem poder sobre os filhos e a pagar uma pensão à mulher emancipada. Pelo contrário. Parece-me que a única forma de travar esta violência é, para variar, acreditar nas vítimas – e impedir efectivamente que o agressor possa ter qualquer contacto com elas, enquanto se apura a verdade. Se a violência não for provada, paciência: quantos presos preventivos não acusados de crimes contra a integridade física de outrem não são depois libertados?
A avaliar pelo mapa dos feminicídios desenhado pelo Público, a partir de um relatório elaborado pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), o único distrito onde não houve mortes foi o de Castelo Branco.
Curiosamente, Castelo Branco foi o território de uma experiência-piloto conduzida em 2000 pelo então Ministério da Igualdade de Maria de Belém Roseira, e liderada por Maria Manuel Viana: os Gabinetes para a Igualdade, que então se prometiam para vários outros distritos, com o objectivo de atacar na raiz a violência e tudo o que a propaga: insucesso escolar, desemprego, etc.
Infelizmente, a experiência durou pouco e não teve sequência. Pelos vistos, alguma coisa ficou. É através da acção concreta que se muda a realidade. O resto são balelas.