Como se isso não fosse suficiente, deu corpo e alma ao malogrado realizador italiano Pier Paolo Pasolini, ao serviço do irreverente Abel Ferrara. Isto sem olvidar o trabalho no teatro com o encenador de vanguarda Robert Wilson. Em San Sebastián, Dafoe admitiu-nos que gosta de ser bem pago, de ser reconhecido, mas acima de tudo quer ir além do puro entretenimento. Como se comprova na dimensão do seu registo avassalador em Pasolini, agora em exibição nas salas de cinema nacionais.
O filme de Abel Ferrara baseia-se no último dia e, em particular, na última hora da vida de Pasolini. Encontrou muito material disponível?
Existe em Itália um enorme debate sobre quem o matou, há muita informação. A mim pessoalmente interessava-me mais o seu trabalho e os seus pensamentos do que propriamente a sua morte. Foi esta a nossa visão pessoal. Sinto-me mais confortável fazer um filme que fale sobre ele do que um filme sobre a sua morte. Acho que para isso teríamos de ser italianos…
Disse que não queria representar o Pasolini, mas sim uma versão dele, um pouco como fez com Jesus em A Última Tentação de Cristo (1988). É verdade?
Sim, de resto era a única forma como poderia representá-lo. Já representei papéis em que começo com uma imitação, com uma mímica. Mas este não era o caso. A ideia era representar o seu espaço, as suas ideias, os seus pensamentos'. Não se trata de uma representação baseada num artigo da Wikipedia.
O Abel Ferrara disse que a escolha da língua inglesa foi apenas uma questão prática. Essa decisão partiu de um consenso entre ambos?
Como sabe, filmámos em italiano e em inglês. E depois decidimos o que faria mais sentido. E achámos que seria o inglês. É uma língua mais versátil, até porque estávamos a criar a nossa própria realidade. Por outro lado, o inglês é a língua em que me sinto mais à vontade.
Até porque não queria fazer um mero mimetismo, é isso?
Posso falar italiano, mas isso faz com que entremos no tal jogo da imitação e nos afastemos cada vez mais da minha zona de conforto. Acabou por ser um processo natural. E tínhamos mais flexibilidade no inglês. Como está, acho que tem uma textura mais credível. Sobretudo num país em que os dialectos são muito diferentes entre si e complicados de entender mesmo entre italianos.
Ao longo deste processo aprendeu alguma coisa sobre Pasolini que desconhecesse?
Muitas coisas. Já conhecia o seu trabalho, mas à medida que íamos avançando na pesquisa fui-me inspirando e aprofundando esse conhecimento. O que mais me surpreendeu foi perceber quão profético ele foi. Nas suas últimas crónicas ele previu tudo o que está a acontecer agora. Antes da globalização da internet, da cultura empresarial. Isso é bastante comovente, porque ele era uma pessoa experimentada e desafiadora, mas continuou a lutar por aquilo que achava belo e humano. Pasolini sentiu a necessidade de lutar contra o falso progresso, procurando aceitar as ideias dos outros e conhecer-nos a nós próprios. Alguns filmes são mais difíceis que outros, mas todos têm na sua raiz esta ideia.
O que mais o fascinou na figura de Pier Paolo Pasolini?
Seduziu-me muito o facto de não haver uma negação, de ser abertamente gay e de viver com a sua mãe. Frequentava os círculos marxistas, a horrível indústria de cinema da altura e os meninos da rua com quem procurava sexo à noite. Todas estas coisas estavam ligadas a ele. Ele tanto poderia estar confortável connosco aqui como a seguir podia ir ter com os trabalhadores dos esgotos. Aliás, ele sempre teve muito amor pelos trabalhadores.
Conseguiu ter algum acesso ao lado mais íntimo e pessoal do realizador, não apenas ao Pasolini mais mundano?
Tivemos acesso a vários documentos da família, mas também aos seus escritos. Ele vivia uma vida bastante burguesa com a sua mãe. Mas não queríamos que este filme fosse uma investigação policial. Procurámos basear-nos em factos, nos seus rituais. Ele era um homem que vinha sempre dormir a casa, mas que tinha também aquele desejo que precisava de ser saciado. Era um homem em que habitavam essas contradições.
Percebe-se que você é um actor que gosta de correr riscos. Isso faz parte da forma como encara a sua profissão?
Nesta profissão, dá ideia que quando corremos riscos é porque somos valentes… Eu gosto de correr riscos, é essa a minha natureza, é assim que vivo. Sinto-me melhor em andar para a frente do que a defender uma posição. É essa a natureza da representação; nasce de uma curiosidade de ver e de ser.
Mesmo quando participa num filme mainstream?
Mas isso também representa um risco. Não faço essa distinção. A minha aproximação ao acto de representar é pessoal, nunca foi encarada como um trabalho. É mais do que isso, é um modo de vida. Pode parecer algo pretensioso, mas acho que é verdade. Claro que gosto de ter novas oportunidades, gosto de ser pago, gosto de ser reconhecido. Mas procuro um sentido pessoal de ser útil ou de fazer algo que me dá prazer.
Mesmo assim consegue ser autocrítico naquilo que faz?
Sabe uma coisa? Acho que não tenho de ser… [risos] Há outras pessoas para isso.
Tem trabalhado com o Lars Von Trier e o Abel Ferrara, dois realizadores que gostam de ir aos limites. Isso confirma o que estava a dizer?
Nós escolhemos aqueles com quem queremos trabalhar, não é? E gostamos de estar com aqueles que achamos que trazem à superfície o melhor de nós. Não quero forçar comparações, mas esses dois nomes que referiu possuem a mesma insatisfação que eu próprio tenho – o desejo de mudar alguma coisa. Ao desafiarem-se a si próprios, eu consigo participar nessa luta. Gosto disso. De pensar que não estamos apenas a fazer entretenimento, mas sim alguma coisa com substância.
Acha que por detrás disso tudo está o seu trabalho realizado no grupo de teatro experimental Wooster Group?
Essa é a minha cultura. Agora já não trabalho com o Wooster Group, mas essa foi uma parte muito importante da minha vida. E que me moldou. Agora trabalho com o Bob Wilson, com quem vou fazer dois espectáculos. É uma pena que o mundo do teatro e o do cinema não se toquem verdadeiramente, sobretudo nos Estados Unidos.