Os partidos da direita são associados aos patrões, aos capitalistas, à exploração dos trabalhadores; inversamente, a esquerda é vista como inimiga da exploração do homem pelo homem, apoiando o trabalho contra o capital e rejeitando as 'negociatas'.
É este o paradigma de pensamento que ainda hoje vigora em Portugal (e na Europa).
Mas a realidade não é bem esta.
Nos anos 80, o Partido Socialista viu-se envolvido em graves suspeitas de corrupção e escândalos financeiros, com os casos da Emaudio e da TDM (Televisão de Macau) a fazerem manchetes.
Vários amigos de Mário Soares e fundadores do PS – Tito de Morais, Strecht Monteiro, Menano do Amaral, Rui Mateus, Carlos Melancia – apareceram citados nesses negócios duvidosos, e o próprio Soares chegou a ser apontado como cúmplice, por ter fechado os olhos a supostos crimes.
Mas nessa época – por estranho que hoje pareça – Soares não era visto propriamente como um homem de esquerda, até pelo seu combate contra o PCP no pós-25 de Abril ou a boa relação com o embaixador americano Frank Carlucci.
Assim, a 'verdadeira' esquerda continuou a reivindicar o seu estatuto de incorruptibilidade e aversão aos negócios.
Os casos BPN, BPP e mesmo BCP vieram dar razão a esta ideia, pois as figuras envolvidas – sobretudo no BPN – eram todas da área do PSD, desde Oliveira Costa a Dias Loureiro, passando por Arlindo Carvalho; para já não falar na 'sombra' de Cavaco Silva pairando sobre todos os outros.
E as histórias em torno de Isaltino Morais, Avelino Ferreira Torres ou Duarte Lima consolidariam essa tese de ligação da direita a negócios escuros.
Estava a questão neste pé quando alguns destacados socialistas quiseram voltar a dar um ar da sua graça.
É certo que já tinha havido outros casos suspeitos, como o da Fundação para a Prevenção e Segurança, de Armando Vara; mas durante o consulado de José Sócrates as suspeitas de escândalos multiplicar-se-iam como cogumelos em terreno húmido: Freeport, Face Oculta, Tagusparque, etc.
E os nomes que lhes surgirão associados pertencem todos ao PS ou ao círculo de relações do líder socialista, como Armando Vara, José Penedos, Rui Pedro Soares, etc.
Reconheça-se que António José Seguro, quando liderou o PS, se apercebeu deste fenómeno e quis cortar o mal pela raiz, denunciando «a promiscuidade entre a política e os negócios» na área socialista, mas ninguém o quis ouvir – porque António Costa já trazia uma estrela na testa e não era ocasião para falar de assuntos incómodos.
Vencedor da disputa interna, Costa borrifou-se para a dita 'promiscuidade' e foi repescar José Sócrates e os seus muchachos.
Não contava certamente com o que estava a preparar-se – a próxima detenção de Sócrates -, de contrário teria sido seria bem mais cauteloso.
E a prisão do ex-primeiro-ministro veio repor com estrondo a questão da honestidade da esquerda.
Ao contrário da ideia feita, ficou claro que as negociatas – para não dizer a corrupção – não são nos dias de hoje um monopólio da direita.
A esquerda (leia-se: muitos socialistas) também já entrou em cheio no festim, talvez com mais sofreguidão do que a direita porque quer recuperar o tempo perdido.
E com mais incoerência, porque sempre disse que estava do lado dos humildes.
A coisa chegou a tal ponto, que hoje é o PSD quem aparece na primeira linha do combate à corrupção, querendo avançar com a criminalização do enriquecimento ilícito – com a ministra Paula Teixeira da Cruz à frente da cruzada -, enquanto o PS se opõe.
E vemos figuras históricas do socialismo, como Mário Soares, defenderem com unhas e dentes a inocência de pessoas como o banqueiro Ricardo Salgado, que levou o maior grupo financeiro português à falência!
Também não deixa de ser interessante, a propósito do colapso BES, a reclamação feita pelo ex-ministro socialista Manuel Pinho – que exige ao banco falido 7,8 milhões de euros correspondentes a uma suposta reforma sem descontos!
Tendo tudo isto em conta, na próxima campanha eleitoral pode acontecer que o PSD apareça como o paladino da Justiça, lutando contra as negociatas – e empurrando o PS para uma posição defensiva.
Até porque foi durante o mandato deste Governo que o combate à corrupção avançou mais, com as condenações de Duarte Lima, Armando Vara e José Penedos, o processo dos Vistos Gold ou a prisão de José Sócrates.
Também ficou claro que Passos Coelho se recusou a ceder à 'chantagem' de Ricardo Salgado, ao contrário do que sucedera durante o consulado de Sócrates, em que a cumplicidade entre o banqueiro e o primeiro-ministro era por demais evidente.
Ao que chegámos: um partido da direita a querer fazer justiça contra a corrupção e os negócios escuros – e o principal partido da esquerda a opor-se!
O mundo está de pernas para o ar.
E com as peregrinações a Évora de figuras gradas do PS – que veneram mais Sócrates do que a senhora de Fátima – não se endireitará tão depressa.