A obra do canal interoceânico, a cortar a Nicarágua ligando os oceanos Atlântico e Pacífico, ficou em 2012 a cargo da Hong Kong Nicaragua Canal Development Investment (HKND), do empresário chinês Wang Jing, com negócios na área das telecomunicações. Houve logo quem franzisse o sobrolho: “O Governo ignorou a lei e escolheu esta companhia que não tem experiência na construção de infra-estruturas”, avançou à Wired Jorge Huete Pérez, presidente da Academia de Ciências da Nicarágua, referindo-se ao facto de não ter havido concurso para o megaprojecto.
Com cerca de 280 quilómetros de extensão, o plano do canal engloba ainda um aeroporto internacional, complexo turístico e oleoduto, dois portos e uma ferrovia, num custo estimado de mais de 40 mil milhões de dólares. Os críticos questionam como a HKND vai conseguir suportar os custos, insinuando que será Pequim a entrar com o dinheiro. Wang Jing nega, reiterando que é um “empresário privado”. Uma construtora estatal chinesa foi recrutada por Jing para a obra.
Impacto ambiental desconhecido
A construção do canal arrepia os ambientalistas: vai atravessar o Lago Nicarágua – a maior reserva de água doce da América Central, abrigo de espécies únicas e motor de um complexo ecossistema – e floresta virgem, além de passar por reservas naturais e indígenas. Além disso, o lago não tem a profundidade projectada para o canal, o que vai implicar dragá-lo, com a poluição decorrente.
Estas questões serão relativas para o Presidente nicaraguense Daniel Ortega, que em 2007 tinha garantido publicamente que não permitiria projectos que afectassem o lago, “nem por todo o ouro do mundo”. Agora, o facto de o estudo de impacto ambiental encomendado pela HKND ainda não ter sido sequer tornado público não surge como relevante.
Como será de somenos a expropriação dos terrenos de cerca de 30 mil proprietários que estão na rota do canal. O empresário chinês prometeu transparência. Na cerimónia do arranque da obra – que deverá durar segundo estimativas optimistas cerca de cinco anos –, no final de Dezembro, Wang Jing assegurou: “Ninguém vai tocar num centímetro de terra sem que haja um acordo e que o proprietário esteja satisfeito com o pagamento”.
Para vender o projecto, que considera “o mais importante na história da humanidade”, acenou com a bandeira do emprego: 50 mil postos de trabalho para nicaraguenses durante a construção do canal, número que ascenderá a 200 mil quando as estruturas estiverem operacionais.
O optimismo chinês e do vice-PR Omar Halleslevens, que acrescentou que a “Nicarágua espera movimentar 5% do comércio mundial que se faz pelo mar, o que trará mais benefícios económicos e duplicará o PIB”, não chega para fazer mudar de ideias aqueles que se manifestam contra a obra.
Sucedem-se protestos ao ritmo de palavras de ordem como “Chinos fuera!” (Chineses fora!) e “Vendepatria” – numa alusão à soberania entregue a uma potência estrangeira: a HKND terá a concessão do projecto durante cem anos.
Há relatos de activistas presos e espancados sob custódia policial, como Octavio Ortega, que passou sete dias na cadeia sem ser presente a um juiz, quando o prazo máximo é de 48 horas, após ter sido sovado numa manifestação.
Projecto antigo
A ideia de um canal interoceânico na Nicarágua não é recente. O país foi ultrapassado pelo Panamá, há mais de cem anos – o rival era o preferido dos Estados Unidos. Para afastar a concorrência, Washington entregou a Manágua três milhões de dólares, em 1914. Esse valor garantia aos EUA o direito exclusivo de construir um canal na Nicarágua nos 99 anos seguintes. O acordo, considerado uma venda da soberania nicaraguense, só viria a ser anulado em 1970, mas a ferida no ego nacional ficou aberta.
Ser o segundo mais pobre entre os países do hemisfério ocidental (apenas atrás do Haiti) também não ajuda e a Nicarágua quer apostar no crescimento industrializado em vez de, por exemplo como a vizinha Costa Rica, preferir o turismo.
Manágua vai correr o risco de as monumentais obras não serem concluídas se faltar o dinheiro. E vai avançar sabendo que a expansão do canal do Panamá, cujo fim se prevê em 2016 (num projecto aprovado em referendo nacional), vai permitir ao velho rival a passagem de até 16 mil cargueiros com 12 mil contentores, perante os 5 mil contentores actuais.
Contra isto a HKND acena à Nicarágua com a transitabilidade de cargueiros que transportem até 25 mil contentores – uns monstros marinhos que não podem ser recebidos em qualquer porto, devido às suas dimensões.