O autor desta frase é um jornalista e escritor argelino, Kamel Daoud. A frase faz parte de um romance que acabei de traduzir e que será em breve publicado pela Teodolito: Mersault, contra-investigação.
Trata-se de uma resposta a O Estrangeiro, de Camus: a história do assassinato do árabe a que Camus nem sequer deu nome.
Daoud decidiu chamar-lhe Moussa (eco do próprio Mersault, o assassino) e contar o que sucedeu, antes e depois do crime, à sua mãe e ao seu irmão, que é o narrador. Trata-se de um romance perturbante e lúcido, tão crítico em relação à colonização francesa da Argélia como ao destino que, depois da independência, o país escolheu.
Sucede que, há um mês, o imã integrista Abd El Fattah Hamdache lhe decretou uma fatwa – ou seja, uma condenação à morte.
O escritor apresentou queixa contra o imã, mas não teve qualquer reacção das autoridades.
Há dias, numa entrevista a uma rádio francesa, Daoud recordava o ataque terrorista ocorrido em Março de 1994 contra o semanário argelino L’Hebdo Libéré, do qual resultaram dois mortos e três feridos. Em 1996, os terroristas mataram três funcionários do jornal Le Soir d’Algérie.
Os ataques do terrorismo islâmico à imprensa livre não têm fronteiras. Na sequência do massacre à redacção do Charlie Hebdo, desenvolveram-se as habituais teorias da conspiração e contra-conspiração, de acordo com as ideologias, os terrores e as ilusões profundas de cada um, criando fortes embates políticos e mediáticos.
Os líderes do chamado islamismo moderado vieram de imediato distinguir as fronteiras do Islão e do terrorismo.
Em 2011, Charb, o director assassinado do Charlie Hebdo, assinalava lucidamente que não há muçulmanos moderados mas cidadãos – iguais perante a lei e firmes na defesa da liberdade de expressão.
Entretanto, ao mesmo tempo que, um pouco por todo o mundo, se multiplicavam os votos de indignação contra o ataque ao jornal francês, na Arábia Saudita o bloguista Rafi Badawi era açoitado, com os pés e as mãos atados, numa praça pública e diante de centenas de pessoas.
Foram as primeiras 50 chicotadas das mil a que está condenado – e ainda a dez anos de prisão e uma multa de 266 mil dólares pelo crime de ter criticado, no seu blogue, o poder da hierarquia religiosa.
Quantos dos chefes de Estado e de Governo solidários com os mortos de Charlie em Paris, no domingo passado, estarão dispostos a mexer-se para acabar com a tortura e a prisão deste cidadão saudita, ainda vivo?
A liberdade de expressão só serve para o Ocidente?
Os massacrados da Nigéria e os valentes da Arábia Saudita não interessam?
Assim fica difícil.