E se de repente lhe dissessem, olhando para uma descrição dos seus genes, que iria ter cancro em determinada fase da vida? Ao choque inicial seguir-se-ia uma reacção típica: perdido por cem, perdido por mil, vou comer tudo o que me aparecer à frente, viver em festas regadas a álcool, e, por que não?, vou regressar ao bom cigarrinho após as refeições. Pelo menos.

Não é o que diz um estudo com o carimbo da ultra-respeitável e altamente conceituada Universidade Johns Hopkins, dos EUA. Mas foi assim que os leitores, espectadores e cibernautas interpretaram os resultados apresentados no artigo científico assinado por Cristian Tomasetti e Bert Vogelstein, que fizeram uma análise estatística de outros artigos científicos na matéria. E que concluíram, explicando de maneira muito resumida, que dois terços da incidência de cancros são explicados por mutações genéticas que ocorrem quando as células se dividem. Ou seja, dito, preto no branco, ter um tumor maligno pode ser uma questão de sorte (ou, evidentemente, de azar). Se ele estiver inscrito nos nossos genes, ou se eles sofrerem mutações ao longo da vida, é fortíssima a probabilidade de o virmos a ter.

A dupla de investigadores teve, desde logo, a necessidade de sublinhar duas vezes a frase 'mas isso não significa que devamos baixar a guarda no que toca à prevenção do cancro'. Até porque, convenhamos, os títulos que foram dados ao trabalho na sua versão científica – 'Variação no risco de cancro nos tecidos pode ser explicada pelo número de divisões nas células estaminais' – ou na versão divulgada aos media – 'Má sorte de ter mutações imprevisíveis desempenha um papel crucial no cancro, demonstra um estudo' – levavam a entusiasmos diferentes a partir de um mesmo assunto…

O 'caso' Angelina

É preciso ir por partes. Que o nosso 'destino' está de certo modo traçado pela genética, e pelas mudanças que vão ocorrendo na nossa vida nas 'letras químicas' que compõem o nosso ADN, todos sabemos. Ou, pelo menos, disso temos alguma intuição. O caso muito mediático da actriz norte-americana Angelina Jolie, mais do que os conselhos de auto-ajuda ou de 'superação pessoal' que poderia transmitir, diz-nos muito. Em Maio de 2013, a actriz fez uma dupla mastectomia preventiva – uma cirurgia para remover as duas mamas – depois de descobrir, por exames médicos diversos, que era portadora do BRCA1, um gene 'defeituoso' que lhe aumentava a hipótese de ter cancro da mama em 87% e dos ovários a 50%.

O caso teve direito a um artigo de opinião escrito na primeira pessoa no New York Times e lançou o alerta para esta situação. Logo a seguir à intervenção, Angelina fez uma reconstituição mamária e descansou, aos 37 anos, por conseguir prevenir um futuro que poderia ter sido trágico e que terá herdado da mãe, que morreu de cancro da mama aos 56 anos.

Não se pense, contudo, que é assim em todas as situações. Este é um mundo particularmente complexo, mas do qual já se sabe bastante sobre as origens. “Sabemos hoje que há 10 a 15% desses cancros com uma forte agregação familiar e em cerca de metade deles conhecemos as alterações genéticas responsáveis (chamamos a este subgrupo cancros hereditários)”, explica Manuel Sobrinho Simões, director do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP). O caso de Angelina cabe nesta percentagem minoritária. “Esses casos devem ser seguidos por geneticistas clínicos e têm formas de prevenção/tratamento particulares”.

A restante percentagem não cabe apenas nesta espécie de fatalidade genética. Ou, melhor dizendo, engloba outros factores. Sobrinho Simões faz um aviso à navegação a propósito do estudo de Tomasetti e Vogelstein. “O artigo é interessantíssimo, mas os resultados do trabalho têm sido muito mal 'explicados' e estão a fazer muito, mas muito mal à literacia sobre o cancro”.

O especialista sublinha que esta família de doenças, como 99% das outras, aliás, resulta da interacção entre a genética e o ambiente. E o segundo destaca-se em importância: “O peso relativo dos factores ambientais é muitíssimo superior ao dos factores genéticos na ocorrência do cancro”. A frase aplica-se às doenças 'civilizacionais', como a diabetes, a obesidade, a hipertensão, a sida, a tuberculose, a depressão e doenças geriátricas (dos idosos), entre outras.

É o que dizem os próprios Tomasetti e Vogelstein por outras palavras. Perante as dúvidas suscitadas pelo press release do artigo científico, a Universidade Johns Hopkins publicou um conjunto de perguntas e respostas, dadas pelos investigadores, para tirar teimas. Os autores do estudo comparam o desenvolvimento do cancro nas pessoas a ter um acidente de carro. “Os nossos resultados são o equivalente a demonstrar a grande correlação entre a distância da viagem e o risco de ter um desastre”, escrevem no documento.

Uma questão de ambiente

Os factores ambientais podem comparar-se às condições da estrada que percorremos nesse trajecto imaginário. Os factores genéticos que herdámos seriam o estado mecânico do carro. A partir daqui, a analogia torna-se clara. É evidente que se o carro tiver travões desgastados ou pneus carecas o risco de acidente aumenta. Ao mesmo tempo, à medida que passam os anos, esses problemas mecânicos aumentam se nada for feito.

Por outro lado, a divisão celular – e as consequentes alterações genéticas – que os investigadores consideram também como factor importante de risco podem ser comparados à distância que percorremos na estrada. Se ela for maior, a probabilidade do tal acidente aumenta. Esta analogia serve para dizer, continua a dupla de cientistas, que se estima que dois terços das variações de risco “são atribuíveis a mutações que ocorrem na divisão das células estaminais ao longo do tempo de vida de uma pessoa”. O restante, ou seja um terço do risco, é associado por eles a factores ambientais e a mutações genéticas herdadas.

À pergunta se os resultados podem ajudar a entender a origem do cancro, respondem simplesmente que a doença não é causada por um só factor. “Há quem tenha interpretado mal o nosso estudo, dizendo que dois terços das causas de cancro são devidos ao azar”. Em suma: as recomendações de cautela com os hábitos de vida mantêm-se, tal e qual. A complexidade triunfa, mais uma vez, e as estatísticas confirmam a tese dos múltiplos factores.

Sobrinho Simões acrescenta: “É claro que há um factor sorte/azar – de cada dez pessoas que fumam só uma ou duas virão a ter cancro do pulmão e só mais uma ou duas terão outros cancros associados ao tabagismo (bexiga, esófago, colo do útero)”. Tal como, noutras situações, de cada 100 pessoas infectadas pela bactéria Helicobacter pylori só uma pequena parte virá a ter cancro do estômago.

A conclusão é, por isso, a mesma. “Felizmente que os autores do artigo, apesar de falarem no azar, não caíram na irresponsabilidade de advogar a não prevenção, pois ela continua a ser, em conjunto com o diagnóstico precoce, a forma mais segura de lutar contra a doença”. Por seu lado, Vogelstein conclui o questionário com uma sentença: “Todos os cancros são causados por uma combinação de azar, do ambiente e da hereditariedade e criámos um modelo que pode ajudar a quantificar o peso de cada um destes factores no desenvolvimento da doença”.

Os conselhos mantêm-se: não fumar, evitar o excesso de peso e a obesidade, não exagerar no consumo de álcool, fazer exercício físico regular, evitar o sol à chamada 'hora do cancro' (cerca das 12 às 15h) e a exposição demorada sem protecção, recorrer à vacinação para a hepatite B e, no caso das mulheres, contra o vírus do papiloma humano (para prevenir o cancro do colo do útero) são essenciais à prevenção. Mesmo que tenhamos susceptibilidade genética, sublinha Sobrinho Simões, com estes cuidados “a ocorrência de cancro na população diminuiria em cerca de 70 a 80%”.

Seja como for, o aumento da esperança média de vida teve nesta doença uma das contrapartidas. Se duramos mais tempo, estamos mais sujeitos a tê-la. Portugal, onde se estima que haja 55 mil novos casos por ano (segundo o registo Oncológico Regional – ROR, em 2009 registaram-se 44.694 novos casos), não escapa à tendência, como mostram os resultados estatísticos dos últimos anos e que reproduzimos nestas páginas.

A taxa de mortalidade ronda os 23 a 25 mil pacientes por ano, e o Alentejo (dados de 2006) é a região mais afectada, de acordo com o ROR. “Isto é, estamos a curar e/ou a controlar – nem sempre se pode falar de cura – cerca de 55% dos doentes”, afirma Sobrinho Simões. 'Tipicamente' português é o cancro do estômago, cujo número de casos supera os da Europa.

Em linha com o Velho Continente estamos nos casos dos cancros do cólon e do recto, mama, próstata e pulmão. Os mais letais têm escalas diferentes, de acordo com os dados do director do IPATIMUP: “São muitíssimo letais os cancros do pâncreas e do cérebro, e muito letais os do pulmão, estômago, fígado e esófago e algumas leucemias/linfomas”.

Pelo perigo que representa, é uma doença da qual, mais do que noutras situações, se quer saber as causas. A prevenção é fundamental, mas há perigos do meio ambiente que ainda estão na dúvida. A exposição a campos electromagnéticos (ELM), por exemplo, alimenta o imaginário ocidental como o faziam, há milénios, as epopeias clássicas.

Há um projecto em Portugal que estuda o grau de perigo à nossa exposição aos campos ELM. Chama-se MEDEA, junta a Sociedade Portuguesa de Física e a Rede Eléctrica Nacional e corresponde a um dos anseios da Organização Mundial de Saúde – vivendo nós rodeados de electricidade, até que ponto isso nos afectará?

Estudar as frequências

Porém, é preciso concretizar as perguntas com exemplos: será que falar ao telemóvel aumenta o risco de virmos a ter um tumor no cérebro? “Os estudos científicos, até hoje, não conseguiram provar se a exposição a campos ELM provocam cancro ou aumentam a sua possibilidade”, responde Maria José Ribeiro Gomes, coordenadora do MEDEA. Na verdade, o projecto tem contribuído para fazer cair certos mitos da nossa exposição a estes campos. No caso dos telemóveis em particular, há que distinguir entre os campos gerados pelo transformador quando o aparelho está a carregar na tomada eléctrica (50 ou 60 hz, ou seja, muito baixa frequência) e os associados ao uso, que já podem somar 800 a 2400 megahz, uma alta frequência.

A profundidade da penetração no nosso corpo dos campos ELM depende dessa frequência. Para medir isso, usa-se a taxa de absorção específica (SAR) para uma certa massa de tecido, medida em watts por kg. Os nossos limites para os campos são baseados na SAR, uma informação que consta nas fichas técnicas dos telemóveis. Devemos, por isso, lê-las com atenção para conhecer as frequências, até porque não existem ainda estudos conclusivos sobre os efeitos dos campos ELM na saúde humana, aconselha Maria José Ribeiro Gomes, que adverte também que devemos “recorrer a entidades qualificadas e confiar apenas nas medições e não nas especulações”. Como em tudo, é preciso derrubar mitos.

ricardo.nabais@sol.pt