Foram três meses feitos de aventuras, de medo e de superação pessoal que, anos mais tarde, Cheryl decidiu contar em livro. Livre -Uma História de Autodescoberta, Sobrevivência e Coragem, editado em Portugal pela Presença, conquistou milhões de leitores por todo o mundo. Agora chega ao cinema pela mão de Reese Witherspoon, que adquiriu os direitos da obra e veste a pele de Cheryl, naquele que é, para muitos, o grande papel da sua carreira (e que já lhe valeu nomeações para o Óscar e para o Globo de Ouro). Realizado pelo canadiano Jean-Marc Vallée, o filme estreia-se em Portugal a 19 de Fevereiro. A Tabu falou com a autora do livro por email antes da euforia causada pelas passadeiras vermelhas.
Houve uma fase da sua vida em que perdeu a sua mãe, divorciou-se, tinha um emprego que odiava e problemas de ordem pessoal. Como lhe surgiu a ideia de partir sozinha para percorrer o Pacific Crest Trail (PCT)?
Como escrevi no livro, a minha vida tinha batido no fundo. Sabia que teria de haver uma mudança e que fazer alguma coisa na natureza selvagem me ajudaria a encontrar força e clareza no meu íntimo. O meu primeiro impulso não foi especificamente percorrer o PCT nem sequer andar de mochila às costas. Apenas senti o desejo simples e profundo de fugir da vida que tinha naquela altura. Foi pura sorte estar na fila de uma loja de artigos para actividades ao ar livre quando vi um livro sobre caminhadas no PCT. Esse guia é um dos muitos livros que mudaram a minha vida para melhor. Desde que o tive nas mãos, nunca mais olhei para trás.
Que preparativos envolveu esta viagem?
Em primeiro lugar tive de preparar e embalar toda a comida que iria comer ao longo da minha caminhada. Isso implicou fazer uma estimativa muito precisa de quanto andaria por dia, para escolher os sítios próximos do trilho onde ia recolher as caixas de comida que tinha enviado para mim própria através do correio. Também tive de comprar o equipamento adequado e de planear todo o itinerário.
Alguma vez pensou desistir? Por que não o fez?
Pensei desistir muitas vezes por ser muito duro, mas uma voz interior sabia que não ia desistir. Era uma missão!
O momento em que voltava a pôr a mochila às costas era decisivo. Chegou a chamar-lhe 'monstro'. Pode falar um pouco sobre isso? Sobre essa dificuldade específica? Passou-lhe pela cabeça deixar coisas para trás?
Cometi um erro muito comum entre os principiantes: levei demasiadas coisas. A mochila estava incrivelmente pesada. Tão pesada que eu nem a conseguia levantar. O paradoxo é que claro que tinha de a levantar – e assim fiz. Mas não deixei nada para trás porque não sabia o que poderia fazer-me falta. Ao fim de duas semanas de caminhada, tornei a mochila mais leve, mas mesmo assim estava demasiado pesada. Isso tornou a progressão fisicamente muito mais exigente, mas aguentei.
Como foram os primeiros dias sozinha na floresta? Alguma vez se arrependeu da sua decisão de partir?
No fundo do meu coração nunca me arrependi, mas sim, naqueles primeiros dias tive dúvidas sobre se partir naquela aventura teria sido uma boa decisão. Foi muito mais difícil do que eu tinha imaginado. Nos primeiros oito dias nem sequer me cruzei com qualquer outro ser humano! Isso foi intenso. Passava frequentemente dois, três dias sem ver outras pessoas. Habituei-me, mas ao princípio era desconfortável e cheguei a desejar nunca ter ido.
Também não tinha telemóvel, iPad, nada. Como foi isso, como lidou com a solidão?
Gosto de estar sozinha, mas passar dias inteiros sem qualquer contacto humano é uma experiência singular. Estava totalmente dependente de mim própria. Mas repare que fiz esta viagem em 1995, quando os telemóveis não estavam tão generalizados e não havia iPads nem nada disso, pelo que nunca me senti perdida por não os ter. O nosso mundo mudou muito rapidamente no que diz respeito a isso. Sinto-me com muita sorte por naquela altura não ter forma de comunicar com outras pessoas que estavam no mundo civilizado. Isso tornou a experiência mais profunda. Hoje, quando vou fazer caminhadas, normalmente tenho o iPhone no bolso. Há qualquer coisa que se perde quando estamos num sítio selvagem e podemos enviar e receber emails.
Ser uma mulher sozinha na floresta deve ter sido assustador. E, de facto, encontrou alguns homens estranhos ao longo do caminho. Pode contar-nos como foi?
Antes de empreender a caminhada decidi que tinha de ser corajosa. Como digo no meu livro, tive de 'reescrever' a história que é contada às mulheres. Somos vistas tantas vezes como o sexo fraco, as vítimas. Percebi que só podia partir se apagasse essas histórias da minha mente e, em vez disso, pensar em mim como uma pessoa forte. Tive medo algumas vezes, mas não muitas. Quando estava assustada, dizia a mim própria que não estava. Cruzei-me com dois homens no caminho que não tinham boas intenções, mas foi a única má experiência. Todas as outras pessoas que encontrei foram incrivelmente atenciosas. Senti-me segura entre homens.
E em relação aos animais selvagens? Do que teve mais medo? Dos grandes, como os ursos, ou dos pequenos, como aranhas, cobras e rãs?
Cresci numa zona rural do Norte do Minnesota, o que constituiu uma vantagem. Sabia que a maior parte dos animais selvagens não quer nada com os humanos. Os animais que mais temi foram as cascavéis, mas aprendi que desde que não as incomodasse, elas não me incomodariam a mim – vi-as e fiz por não as pisar. Também vi muitos ursos. Felizmente fugiam sempre. O animal que mais me aterrorizou foram as dezenas e dezenas de pequenas rãs pretas que, uma noite, me saltaram para cima enquanto dormia. Ainda fico arrepiada só de pensar nisso.
De todas as que mencionou, qual foi a experiência mais aterradora?
A mais assustadora foi a que tive com os tais dois homens que pensei que poderiam querer fazer-me mal. Outra foi caminhar durante quilómetros e quilómetros sobre a neve. Nem sequer sabia se estava no trilho. Tive consciência do perigo que estava a correr, até porque podia perder-me. Por vezes a minha imaginação ficava fora de controlo quando começava a pensar nos pumas. São caçadores furtivos e sabe-se que nos últimos anos têm atacado pessoas.
Houve outros obstáculos que tivesse de superar?
Os pés doíam-me constantemente. Foi preciso muita força mental para ignorar a dor e seguir em frente. Lidar com essa dor ajudou-me a lidar com a dor emocional quando ela surgiu. A tarefa física que empreendi tornou-se uma metáfora para a cura emocional que procurava.
O que esperava encontrar no fim da viagem?
Paz interior. Uma noção renovada da minha própria força e valor. A centelha da vida.
E o que encontrou realmente?
Tudo isso e muito mais. Aprendei a aceitar. Aprendi a continuar em frente mesmo quando dói.
E em que sentido isso a mudou?
Sou a mesma pessoa que era no primeiro dia da caminhada, por isso não sei se mudei, mas a caminhada ajudou-me a transformar uma vida de luta e sofrimento numa de perseverança e alegria. Precisava de sair do caminho auto-destrutivo em que estava. E consegui.
Na altura em que fez esta viagem já escrevia. No entanto levou-lhe muito tempo a escrever este livro.
Porquê?
Sim, já era escritora quando percorri o PCT. Sempre fui. Na realidade escrevi Livre muito rapidamente – em apenas dois anos -, mas só comecei a fazê-lo em 2008. Até aí nunca tive interesse em escrever sobre essa experiência. Estava ocupada a escrever outras coisas – o meu primeiro romance, Torch, assim como contos e ensaios. Só ao fim de algum tempo senti que tinha qualquer coisa a dizer sobre a minha experiência no PCT. Precisei de alguns anos para ganhar distanciamento. E penso que é um livros mais rico e mais profundo por ter sido o 'eu mais velho' a escrever sobre o 'eu mais novo'.
Se soubesse o que sabe hoje, teria feito a caminhada na mesma?
Sim! Sim, sim, sim.
rita.s.freire@sol.pt