Trata-se do major general de artilharia Fernando Passos Ramos, que após a Revolução de 1974 foi um dos membros da Comissão Nacional de Descolonização e um dos militares a arriscarem-se no primeiro encontro de cessar-fogo com Jonas Savimbi, líder da guerrilha nacionalista angolana UNITA, que viria a tê-lo pouco depois como principal interlocutor nos acordos de Alvor.
Passos Ramos faleceu na tarde de sábado passado, na sequência de um linfoma, no Hospital Militar de Lisboa. A família manifestou junto de generais amigos o desejo de que o corpo ficasse em câmara ardente na capela da Academia Militar, em Lisboa. No domingo, os familiares do oficial descansaram quando a Servilusa, a agência funerária contratada para o efeito, lhes comunicou já ter autorização do general Carlos Jerónimo.
Avisados pela agência funerária
António Alvim, genro do militar, recorda o alívio: "No meio da dor que sentíamos, sempre dá algum conforto sentir que o seu nome era honrado e reconhecido. De resto, tratando-se de um militar que inclusive desempenhou funções como segundo comandante da Academia, seria tão só natural e justo que o seu corpo ali ficasse, com os amigos e camaradas de armas".
Com a resposta do CEME, a agência funerária prosseguiu com a organização da cerimónia e enviou o anúncio das exéquias para a comunicação social. Enquanto isto, por sms, o Estado-Maior anunciava aos seus generais o mesmo local para as cerimónias de despedida do camarada.
Na segunda-feira, dia previsto para o corpo de Passos Ramos ir para a Academia Militar, pelas 9h00, o desgosto da família é agravado pela proibição de acesso à capela. António Alvim, católico, emerge do luto com indignação: "Na segunda de manhã, é a Servilusa que nos diz que não podia levar o corpo do meu sogro para a Academia Militar porque o capelão, de nome Santiago, não autorizava a sua entrada na capela, dado professar a fé evangélica. Fomos literalmente deixados pendurados com o corpo do meu sogro sem local para celebrar as exéquias. Um militar que arriscou a vida pelo seu país, que o serviu com dignidade e que não teve direito a dignidade na sua morte porque cometeu a 'indignidade' de não ser católico".
Sem alternativas, os familiares desdobram-se para encontrar outro local, enquanto amigos intercedem junto do capelão. O ministro da igreja ter-lhe-á dito que a decisão fora da competência do bispo das Forças Armadas, Manuel Linda.
Manuel Linda remete para o capelão
Mas Manuel Linda – bispo que na Conferência Episcopal Portuguesa preside à comissão Missão e Nova Evangelização, onde se trata do diálogo ecuménico e inter-religioso – lava daí as mãos, quando contactado pelo SOL: "Sobre isso, não lhe sei dizer nada, eu nem sequer estava no país. Isso depende do capelão ou do comandante da Academia Militar".
A história, a partir daqui, torna-se pouco católica. É o capelão Santiago quem dá o rosto para esclarecer a descriminação: "Tem a ver com a sensibilidade religiosa. Esta capela foi construída e consagrada para o culto religioso católico e o senhor bispo foi da mesma opinião. Soube que o falecido era evangélico e, por dever de obediência, comuniquei a D. Manuel Linda e, por dever de lealdade, comuniquei ao CEME, a quem esse facto fora ocultado quando foi pedida a autorização. Como não tínhamos o contacto da família, informámos a Servilusa".
De facto, foi no domingo, após o contacto com o chefe católico castrense, que a agência funerária recebeu a notícia que desautorizava a decisão do CEME, que acabaria por recuar no dia seguinte. O chefe das Relações Públicas do Exército, tenente-coronel João Góis, explica ao SOL: "Nessa fase do processo, não foi contactado o gabinete do general CEME, que tinha já dado autorização para a utilização da capela e, ainda nesta fase, desconhecia a religião professada pelo senhor general Passos Ramos. O gabinete do general CEME tomou conhecimento, na segunda-feira de manhã, dos contactos estabelecidos no domingo entre a agência funerária e a Academia Militar, tendo também tido então conhecimento da decisão da família de optar por outro espaço".
António Alvim, que dá o rosto pela família enlutada, está perplexo: "Não dissemos nem que era evangelista nem católico, o que foi abusivamente pressuposto pelo CEME. Não é doença que se tenha que comunicar. O que se pretendia era um espaço que honrasse a sua memória e onde se pudesse fazer uma cerimónia não religiosa, mas pessoal e dar oportunidade a quem o entendesse de dar vazão aos seus afectos pelo general. Partir-se da presunção de que todo o generalato é católico significa que ser católico é, por si só, um privilégio".
As exéquias acabaram por realizar-se na capela de Santa Joana Princesa.
Três operações para apanhar Savimbi
Quando, em Janeiro de 2002, Jonas Savimbi foi abatido, Passos Ramos – que esteve envolvido em três operações em Angola, duas para o aniquilar e uma para o aliciar a passar para as trincheiras do império, uma manobra em que não punha grande fé – recebeu a notícia com tristeza. "Nunca conseguimos apanhá-lo. Se tivesse morrido, certamente que não lhe fazia honras militares mas dava-lhe um funeral cristão, ao contrário do que lhe fizeram. Nem se sabe se foi enterrado e onde está o corpo. Como combatente admirava-o, mas humanamente era um homem muito duro, frio. Por isso era respeitado entre os gentílicos, que chamavam aos portugueses 'caca de galinha'" – afirmou na altura.