Numa carta ao então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, em Março de 2013, os moradores, representados pela associação cultural Moinho da Juventude, denunciavam “comportamentos persecutórios e racistas, indignos de seres humanos” da parte de agentes, em intervenções ocorridas entre Setembro de 2012 e Fevereiro de 2013. E pediam ao ministro que tomasse “medidas preventivas em nome da segurança”.
O Ministério da Administração Interna não esclareceu, porém, se agiu perante esta denúncia, que também chegou ao Ministério Público (MP) pelas mãos do comandante da Divisão da Amadora. Chegou a ser aberto um inquérito, mas acabou arquivado em Agosto do ano passado por “falta de indícios”.
No despacho final, a que o SOL teve acesso, o MP considerou “proporcionais e adequadas” as condutas dos agentes (incluindo tiros de shotgun), mas admitiu que, “no meio da confusão (…), poderão ter ocorrido situações em que um ou outro agente se tenha excedido na utilização da força (…) ou de expressões de todo inadequadas”. No entanto, “não foi possível confirmar”, nem imputar, esses casos.
Este desfecho não surpreende Mamadou Ba, do movimento SOS Racismo. “Já houve casos mais graves de jovens mortos às mãos de polícias, que acabaram ilibados”, diz o dirigente, recordando o caso de 'Kuku', jovem de 14 anos assassinado em 2009 na Quinta da Lage (Amadora), por um agente que disparou a 10 centímetros de distância. “Foi uma execução”.
'Racismo é o problema estrutural'
O “racismo”, acusa o dirigente, é o problema “estrutural”. “A Polícia nunca age de forma isenta com estes jovens negros e com estas minorias. Arrombam portas sem mandado, cercam os bairros com blindados…”. Na quinta-feira da semana passada, os incidentes voltaram à Cova da Moura, classificado pelas autoridades como 'zona urbana sensível', no topo da lista dos bairros mais problemáticos da periferia de Lisboa. Seis jovens foram detidos: um no bairro e cinco na esquadra de Alfragide. A “violência gratuita”, acusa o dirigente, foi “longe de mais”. “Desta vez agrediram activistas e dirigentes associativos”.
Tudo começou quando Bruno (24 anos) foi detido, supostamente por ter apedrejado uma carrinha policial. Moradores que estavam no local garantem que o jovem foi agredido até sangrar e, acto contínuo, os agentes terão disparado seis tiros de shotgun contra outros moradores que assistiam ao que se passava – entre as quais uma mulher que estava à varanda de casa e foi atingida no peito e numa coxa.
Os tiros foram ouvidos ao longe por dirigentes da associação Moinho da Juventude. Três deles, a que se juntaram dois jovens, resolveram ir à esquadra saber de Bruno. Um foi alvejado logo à entrada, no pátio da esquadra, com dois tiros de shotgun (balas de borracha) que lhe causaram ferimentos sérios numa perna. Tal como os restantes, estava desarmado e garantem que nunca tentaram invadir a esquadra, como diz a PSP.
Hematomas, escoriações, ferimentos de bala e dentes partidos: as lesões dão uma ideia de como a violência terá degenerado naquela tarde. Mal chegaram à esquadra, dizem, um agente bloqueou-lhes a entrada e, de repente, irromperam lá de dentro mais de dez polícias, com bastões e caçadeiras. Dispararam rajadas de shotgun que atingiram um dos jovens, membro da associação Moinho da Juventude. Arrastados para dentro, as agressões continuaram: contam que foram pontapeados, esmurrados, espezinhados e insultados. Alguns comentários ficaram gravados na memória: “A merda é para estar no chão”, “Se eu mandasse, vocês eram todos esterilizados”, “Vão alistar-se no Estado Islâmico”. Os jovens, todos na casa dos 20 anos, já apresentaram queixa-crime contra os agentes da PSP, por “tortura”.
Normas internas restringem uso de shotgun
A Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI), que fiscaliza as polícias, vai escrutinar agora até que ponto esta actuação, no bairro e depois na esquadra, foi legítima e proporcional, incluindo os disparos.
O código interno é rigoroso nesta matéria. Depois de, em 2002, um jovem de 24 anos ter sido mortalmente alvejado no bairro da Bela Vista com balas de borracha que lhe perfuraram o corpo, a PSP aprovou normas internas apertadas sobre o uso de armas e deixou claro que mesmo as menos letais, como a shotgun, se usadas a curta distância, podem matar ou infligir lesões graves. É, portanto, em último recurso, quando esteja em causa uma ameaça elevada e em risco a vida dos próprios ou de terceiros, que os polícias podem disparar contra pessoas, mas nunca a menos de cinco metros e sempre contra os membros inferiores.
“Espero que a IGAI tire as consequências e as comunique ao MP, para que os agentes que se escondem atrás da farda para espancar pessoas sejam devidamente punidos”, pede o dirigente do SOS Racismo.
Policiamento de proximidade recuou
Num bairro onde as feridas nunca sararam – há 'baixas' dos dois lados e ninguém as perdoa -, a Polícia chegou a apostar há alguns anos no chamado policiamento de proximidade, criando laços com a comunidade graças ao trabalho de mediadores (houve até jogos de futebol amistosos entre agentes e moradores). Mas essa estratégia foi aos poucos sendo posta de lado e deu lugar a uma intervenção mais 'musculada'. “Não deixámos de o fazer, mas começámos a apostar num combate mais efectivo ao crime e isso não agrada a muitos moradores”, explica ao SOL fonte policial.
E contextualiza: “É certo que ali vivem muitas pessoas de bem, mas é preciso desmistificar a Cova da Moura. Estamos a falar de um local dominado pelo tráfico de droga, os esfaqueamentos e ajustes de contas entre grupos rivais são constantes, há casas subarrendadas por pessoas de fora que ali desenvolvem todo o tipo de actividade criminosa”.
A tarefa dos agentes, numa divisão com elevada rotatividade e escassos meios humanos e logísticos, não é fácil. “Não é seguro patrulhá-la a pé, há características urbanísticas muito complicadas, e a Polícia continua a ser permanentemente hostilizada”, explica a mesma fonte.
O que aconteceu na quinta-feira da semana passada também será investigado pela própria PSP, que abriu um inquérito disciplinar.