O sexo na bancarrota

Os meus sentimentos, neste Carnaval coincidente com o Dia dos Namorados, vão para Melanie Griffith.

Não lhe bastava ter-se separado de Antonio Banderas e ter tido azar com a requalificação facial, como tem agora a filha a protagonizar a porno-chachada do ano, vulgo 50 Sombras de Grey.

A actriz já anunciou que não vai ver a sua Dakota naqueles preparos de amarrção; recordo a Melanie selvagem e perigosa do refrescante filme de Jonathan Demme (Something Wild, 1986) e penso que deve ser triste andar uma mãe destas a criar uma filha para a ver debaixo do chicote do puro kitsch.

A avó de Dakota (um nome que aliás já não agourava nada de bom) é a Tippi Hedren que protagonizou Os Pássaros e sobretudo a inesquecível Marnie de Hitchcock – um modelo erótico bem mais interessante e ousado do que o da patetinha deslumbrada destas Sombras de coisa nenhuma.

Não tenciono ver o filme; já ia morrendo de tédio só com o trailer.

Li, com dificuldade, algumas páginas do objecto escrito, ao qual não consigo chamar livro – seria pegar fogo ao próprio conceito de leitura.

A prosa é abaixo do básico, falha de tudo o que define a escrita de ficção – imaginação, capacidade de criação de personagens e ambientes, um mínimo de riqueza vocabular e originalidade.

O enredo consiste no já podre conto de fadas sobre o encontro entre a menina frágil e o homem forte. O romance é apimentado por uns artefactos ditos sado-masoquistas, mas o Marquês de Sade daria voltas na cova se soubesse que a sua Justine andava a ser comparada com esta anémona.

A vida erótica das pessoas deve rastejar pelos becos da bancarrota para se entusiasmarem com isto. Há tanto livro mais excitante. Se eu tivesse espaço dava-vos uma lista, caros leitores.

Quero crer que o sucesso desta treta se prende com a falta de acesso do povo a outros livros e com a extraordinária campanha de prós e contras que foi montada em torno destas Sombras.

Infelizmente, muitos grupos feministas deram o seu contributo, bradando que era um escândalo e uma aleivosia dizer-se que as mulheres gostavam de ser dominadas.

Ora as mulheres adultas têm o direito de gostar do que muito bem lhes apetecer, exactamente como os homens adultos. É alguma novidade que a distinção entre o erotismo humano e o sexo animal se faz através da imaginação, para a qual a ideia de transgressão é fundamental?

Como se não bastasse, uma série de associações contra a violência doméstica vem agora exortar as mulheres a que, em vez de irem ao cinema ver este filme atentatório da reputação do género feminino, doem o dinheiro que gastariam no cinema “e na babysitter” às vítimas de violência doméstica.

A mensagem destas ayatolas do puritanismo é clara: não pequem a ver um filme de sexo violento; apiedem-se das que são violentadas e sacrifiquem-se por elas, ficando em casa com a prole.

Não há paciência nem para o filme (e não é por causa do falso 'sexo violento') nem para esta moralice. Pior ainda é a coacção exercida sobre os empregados de uma rede britânica de lojas de bricolage, que foram obrigados a ler a coisa para poderem responder “com educação e conhecimento” aos clientes que, previsivelmente, segundo o patronato, virão em busca de cordas e fita-cola para uso 'sexual'. Isso sim, é assédio moral. E grave. 

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