Como é que este nepalês de 40 anos veio parar a Lisboa e proclama a ambição desmedida (a tal melhor pizza, um dos pratos mais populares do mundo, será servida no seu restaurante) é uma história feita de uma alegria e esperança inesgotáveis, muitas semanas sem férias e uma enorme curiosidade e perfeccionismo. “Sempre fui muito irrequieto”, explica. É um percurso que, salvaguardadas as devidas distâncias, lembra o que Bill Bufford, um antigo editor da New Yorker, descreve no livro A Ferver e que o levou da cozinha do chefe celebridade Mario Batali à Itália profunda, à procura do verdadeiro e melhor ragú ou da pasta perfeita, temas de polémica ancestral que dividem famílias ou levam quase a carnificinas shakespereanas.
Tanka está agora a ler o livro autobiográfico do jornalista e reconhece ecos da sua própria vida. Em 2008, em Lisboa, já com o seu restaurante italiano com um ‘Garfo de Ouro’ atribuído pelo concurso Lisboa à Prova, percebeu que lhe “faltava bagagem” e foi para Nápoles, aprender a fazer a verdadeira pizza italiana. “Podemos agradecer à Maria Paola, a dona do Casanostra, ter trazido para Portugal excelentes pizzas, mas são as romanas, que são fininhas e estaladiças”. As ‘originais’, de primeira categoria, de Nápoles, são fofinhas, têm a massa cheia de ar e são tratadas com a delicadeza de mãos de fadas, sustenta. É caso para se dizer que, neste caso, o argumento ‘Roma locuta, causa finita’ – popularizado recentemente por um deputado português da maioria – não se aplica. A lei pode ter sido escrita pela sede do Império, mas quando se trata de pizzas os napolitanos é que querem mandar. “Pago um jantar a quem me mostrar que no guia Gambero Rosso haja três estrelas atribuídas a quem faça pizzas finas e crocantes”, brinca, capaz, percebe-se, de concretizar.
E é para obter toda a leveza da ‘vera pizza’ que Tanka comprou a máquina que faz parte da galeria de atracções turísticas do Forno d’Oro: uma bela amassadeira Pietro Berto, que custou 20 mil euros e que “trabalha melhor que uma pessoa”. A outra atracção partiu de uma espécie de capricho quando Tanka descobriu que havia uma pizzeria em Nova Iorque com um forno ornamentado com pastilha forrada a folha de ouro e pensou: ‘Por que não ter o segundo forno de ouro do mundo?’. Sita, a mulher, retorquiu-lhe: “O investimento do forno paga-se sozinho porque vai chamar pessoas”. Cheio de vontade de ter só do melhor, Tanka imaginou um forno não só esfuziante por fora como luxuoso por dentro e contratou Stefano Ferrara, “o melhor construtor de fornos de Nápoles”. A agenda de Ferrara é de tal modo preenchida que, contratado em Fevereiro, ele só chegaria a Lisboa em Setembro. O ex libris da casa foi feito com oito toneladas de material vindo de Itália e com uma técnica de construção de mais de três séculos que permite uma temperatura constante de cerca de 500ºC. No balcão, exibe-se a terceira da santíssima trindade de equipamentos luxuosos: o Ferrari das fiambreiras, uma Berkel, num vermelho mais denso que o do bólide, essencial para o bom carpaccio e o corte do presunto de primeira qualidade.
O objectivo do novo restaurante de Tanka Sapokta – mantém em funcionamento o Come Prima, que abriu em 2009 na zona das Janelas Verdes – é fazer a melhor pizza. Para isso, além do rigor da técnica, precisa de fermento biológico e ingredientes de primeira linha. De Itália chega aquele que diz ser o melhor tomate, o San Marsano DOP, ou a burrata (um queijo amanteigado) e a fior di latte. E precisa também dos melhores produtos portugueses para a variada oferta de pizzas de gosto lusitano que inclui queijos e enchidos nacionais e até uma pizza de sardinha. Uma mistura de tradição e criatividade que lhe agrada – um twist da imaginação de um pizzaiolo nascido no montanhoso Nepal mas que se refere a Portugal como o ‘nosso país’.
Em segundo lugar, Tanka Sapokta quer tornar comum a tradição italiana de comer pizza acompanhada de cerveja. Para isso, levou um ano e meio a pesquisar e importar a grande colecção de cervejas artesanais, sobretudo de Itália, que agora exibe.
Quando tinha reunido toda a ideia do que seria o restaurante, pediu à decoradora Cristina Santos Silva que despisse o Mezzaluna para o transformar na nova pizzeria onde, no meio da brancura das paredes e do brilho do forno, se destacam os belos pratos de cerâmica vindos de Siena e mensagens inspiradoras como a recomendação de comer pizza com as mãos, uma batalha difícil de vencer num país de garfo e faca.
Até chegar aqui, Tanka fez um caminho surpreendente. Nasceu em Damek,uma pequena cidade do centro do Nepal. Quando estudava Direito, com 18 anos, decidiu seguir os passos do irmão, cozinheiro num restaurante em Estugarda. “Estive 23 semanas sem folgar um único dia, u porque queria aprender. Fazia a folga de todas as pessoas e assim aprendi o serviço todo”. E teve a sorte, diz, de ter sido tratado como um filho pelo dono do restaurante, que lhe “ensinou tudo o que havia para saber num restaurante italiano de primeira classe”. Em 12 de Outubro de 1996, após seis anos na Alemanha, chegou a Lisboa “com 28ºC no Terreiro do Paço, nem conseguia abrir os olhos com tanta luz”. Veio com um amigo em busca de uma identidade europeia e acabou por escolher Portugal como residência, fruto da sua capacidade de antever oportunidades.
Procurou na lista telefónica restaurante italianos onde trabalhar e quando disse, em italiano, que era do Nepal “eles pensaram que era de Nápoles”. Três dias depois entrou na cozinha do Trattoria (dois quarteirões acima do actual Forno d’Oro) onde achou que “se aquele era dos melhores italianos de Lisboa, então eu podia mais tarde abrir um restaurante de categoria”. No Trattoria, onde se espalmavam as pizzas com rolo da massa, um tratamento que a sensibilidade de Tanka abomina, a brigada da cozinha ficava fascinada com o nepalês a rodar a massa no ar. A juntar à sua formação de cozinheiro italiano tirada na Alemanha teve um empurrão do destino: “Consegui legalização em Portugal com um bilhete de identidade nepalês”.
Após ter trabalhado em pizzerias em Benfica e nas Docas, em 1999, dominando o suficiente de português, abriu o seu restaurante, primeiro com o nome Bella Italia, na Rua do Sacramento a Alcântara. Mais tarde, já na Rua do Olival, abriria o Come Prima. “Tive sorte desde o primeiro dia”, conclui com o seu sorriso afável permanente.
E não foi a falta de sucesso que o levou em 2008 a ir para Itália, deixando cá a mulher, Sita, e dois filhos, para se atirar para uma espécie de doutoramento em pizzas no curso da célebre escola Gambero Rosso. Das 9h às 6h frequentava as aulas, depois ocupava-se a trabalhar como assistente dos chefes da escola. “Como tinha feito o sacrifício de deixar a família tinha que aproveitar tudo ao máximo”. Em 2010, 2012 e 2014 regressaria a Nápoles para procurar novidades, aprofundar referências. Conheceu Franco Pepe, considerado um dos melhores pizzaiolos de Itália.
“Ele chegava a provar cinco pizzas diferentes num mesmo dia”, diverte-se Sita, a nepalesa com quem Tanka se uniu, num casamento “meio arranjado, meio de namoro”, mais um momento incrível na sua história acidentada. “O meu irmão casou com a irmã dela. Nós conhecemo-nos nesse casamento e fui atrás dela até ao Nepal”. Agora, no Forno d’Oro, Tanka atende o telefone, faz reservas, preocupa-se com a qualidade do serviço – que entende não ter ainda chegado ao patamar da comida – e recebe os clientes com uma hospitalidade inusitada. E preocupa-se se toda a gente comeu muitíssimo bem. Até ao dia em que alguém diga que comeu em Lisboa a melhor pizza do mundo.