Viu a rua, onde mantém uma conserveira que também é talho, transformar-se, ganhar novas geografias e fachadas, novos rostos, etnias e vidas ao longo dos anos, das décadas.
Mas já não deverá estar lá para assistir à derradeira transformação que se anuncia: a requalificação da zona que inclui a criação de um largo (e a abertura à rua da Palma, entalhada entre o Benformoso e a Avenida Almirante Reis) e a construção de uma mesquita que deverá substituir a existente, improvisada num velho armazém da zona com porta verde e toldo desbotado.
Quando questionado, o comerciante, bem-disposto, atalha logo que vai “fechar portas assim que puder” – avance ou não a mesquita da Mouraria. Um projecto da Câmara Municipal de Lisboa (CML) aprovado em 2012 e que, segundo fonte oficial da autarquia, deverá avançar em breve.
Comunidade muçulmana
Quanto ao projecto, José Inácio diz não ter opinião formada. “A mim, não me interessa, mas é preciso respeitar todas as crenças”, considera. Mantém boas relações com os vizinhos, sobretudo do Paquistão e do Bangladesh, garante que “a zona é segura” e leva boas recordações.
Mas agora, explica, é hora de reformar-se: “Há tantas etnias com costumes diferentes, os clientes antigos foram morrendo e já vendo muito pouco”. Por isso, o projecto da CML não deverá afectá-lo.
Aos comerciantes da loja de telemóveis, que fica paredes-meias com o novo largo onde será instalado o espaço de culto, o projecto também não atemoriza: “As lojas de baixo [mais próximas do Martim Moniz] é que devem fechar”, explica João, um dos comerciantes da loja sem nome.
Comerciantes desconhecem projecto
Mas nas lojas que deverão, de facto, ser afectadas pelo projecto da mesquita, prevista para esta zona, segundo a CML, devido ao seu passado e à existência de uma forte comunidade muçulmana, ninguém sabe de nada nem ouviram falar no projecto: “Nunca ouvi falar” é a resposta repetida por todos, uma e outra vez.
Nem mesmo o dono da loja de roupas africanas com confecção própria, a Lassana Lane, instalada mesmo em frente ao largo há cerca de um ano, sabe do projecto. “Nunca nos disseram nada”, garante o lojista – o que significa que, até ao momento, a CML não informou nenhum dos interessados de que, possivelmente, terão de fechar portas.
No largo, futura Praça da Mouraria, há graffitis sobre um muro azul, erguido para esconder um edifício devoluto da CML, com traseiras para a Rua da Palma, onde deverá ser criada a nova mesquita da Mouraria, que aguarda verbas para ver avançar o projecto.
Ao lado do largo, lojas de comércio tradicional convivem, pacificamente, com lojas de tudo, de paquistaneses, de chineses, talhos Halal (que vendem carne permitida para consumo da comunidade islâmica, segundo a qual o animal deve ser virado em direcção a Meca, abatido por um religioso muçulmano e ter o sangue escorrido antes do golpe final).
Na manhã desta quarta-feira de muito Sol e pouca clientela, todos garantem desconhecer as intenções da CML.
Câmara dá três milhões
E ao Fórum Cidadania LX, que questionou recentemente a CML em relação ao assunto, pouco mais foi adiantado. Os responsáveis do movimento alegam que a “anunciada demolição de uma série de edifícios existentes na Rua da Palma, para subsequente substituição dos mesmos por uma malha urbana de traço moderno”, é “em tudo alheia ao traçado e às características da Mouraria” e questionam a CML sobre “a origem dos três milhões de euros anunciados como financiamento, via orçamento municipal, previsto para a empreitada de demolição e de construção nova”.
Ao mesmo tempo, o Fórum Cidadania LX interroga a autarquia sobre o motivo de a empreitada “não se fazer antes por via da demolição dos aberrantes centros comerciais existentes no Martim Moniz ou, de construção no próprio Martim Moniz, se assim fosse entendido no quadro de um concurso público”.
Outras das possibilidades avançadas pelo Fórum – e subscritas pela Junta de Freguesia da zona e pela Assembleia Municipal de Lisboa – é a aplicação do “montante indicado na continuação e conclusão do excelente trabalho de reabilitação desenvolvido pela CML na Mouraria”.
'Libertação do terreno em curso'
Ao SOL, fonte oficial do gabinete do vereador Manuel Salgado garantiu que “está em curso o processo de libertação do terreno para dar início à concretização do projecto”.
“No quadro da intervenção de requalificação do espaço público da Mouraria, foi identificada a necessidade de uma maior acessibilidade viária e pedonal da Rua do Benformoso, não só física mas também visual. Para a sua viabilização foi perspectivada a criação de uma praça, entre a Rua do Benformoso e a Rua da Palma – a Praça da Mouraria”, explica a mesma fonte. E concretiza: “O projecto da Praça da Mouraria prevê a criação de um espaço público e a construção de três blocos para instalação de actividades que permitam a sua fruição pública, com funções polivalentes, e a transferência de um espaço de culto – mesquita – já existente na Mouraria”.
Trata-se, acrescenta o gabinete de Manuel Salgado, “do realojamento de um equipamento já existente, onde se acrescentam outras valências importantes para a respectiva integração social desta comunidade, numa zona cuja história remete para a manutenção da presença islâmica na cidade após a reconquista cristã”.
Para construir a nova mesquita – numa altura em que Lisboa é apontada como exemplo pela tolerância religiosa – foi celebrado um protocolo entre o município e o Centro Islâmico do Bangladesh- Mesquita Baitul Mukarram, a 31 de Janeiro de 2013, para acordo dos termos em que será instalada.
O estudo prévio de arquitectura da Praça da Mouraria, da autoria da arquitecta Inês Lobo, foi aprovado por unanimidade em reunião de Câmara de 25 de Janeiro de 2012.