“Procuram os assistentes – logo no seu requerimento de abertura de instrução – dar enfâse às práticas de praxe, mas fizeram-no e fazem-no esquecendo o contexto, a idade, o propósito dos jovens naquelas envolvidos. Esquecem, sobretudo, a voluntariedade dos actos, o prazer que manifestamente retiravam de comportamentos que, visto de modo descontextualizados, se poderiam facilmente ter por tontos, absurdos ou humilhantes (como rastejar). E, nesse mesmo contexto, se naturalmente integra a proibição de uso de telemóveis, o consumo de álcool. E, inevitavelmente e a final, não se duvida, cansaço e desgaste.
Terão estes – se contextualizados – voluntários comportamentos de extraordinário ou censuráveis? De facto, cumprirá a todos nós recordarmo-nos da nossa infância e juventude, das nossas brincadeiras, tontices, clubes secretos, segredos e sacrifícios por causas que agora temos como tolas, para enquadrarmos aquelas circunstâncias de forma adequada – não complacente, note-se, mas necessariamente compreensiva!
De facto, as muitas mensagens transcritas pelos assistentes e trocadas entre os telemóveis dos jovens falecidos e amigos ou colegas revelam isso mesmo – um manifesto divertimento na sujeição a práticas de praxe que individualizadamente se terão necessariamente por desagradáveis – até incompreensíveis! E – tal como expressamente referido em sede de despacho final pelo Ministério Público – disso são prova inequívoca as caras, sorrisos e gargalhadas transmitidas em linguagem emoji ou acrónimos muito comuns entre os jovens do tipo “LOL” (com o significado de “laugh out loud), mesmo que após queixas ou desabafos que ficam, assim, reduzidos à sua verdadeira dimensão lúdica!
E isso não significa, evidentemente, que os jovens não mostrassem desagrado, contragosto, saturação ou mesmo antipatia por este ou aquele colega, independentemente da sua posição na “COPA”, ou mesmo pelo arguido: significa apenas que o conjunto, a sensação de pertença a um grupo fechado, unido, com um propósito definido, lhes era, manifestamente, apelativo! E, também neste contexto, são perfeitamente ajustadas e lógicas as palavras de um convidado (Guilherme) numa reunião do MPC, ao alegar ser “preciso fazer coisas com mais sentido. Não estamos aqui para sermos amigos”! Na idade destes jovens, a procura de sentido para as coisas é, naturalisticamente, mais intensa, ainda que os caminhos trilhados para tal não sejam, eventualmente, os mais adequados a tal propósito!
Antigo é o provérbio que “quem corre por gosto não cansa”. Na realidade quase qualquer tarefa ou provação, quando executada num ambiente de voluntarismo, companheirismo, cumplicidade, festa, se pode realizar de modo profundamente compensatório – embora esta sensação seja evidentemente subjectiva e não facilmente compreensível do exterior!
Também as mensagens de estupefacção e especulação que jovens da Universidade, depois do dia dos factos, trocaram entre si, mais não são do que um reflexo do que colectivamente somos: uma nação onde proliferam comentários de mesa de café, onde a especulação, ainda que desprovida de qualquer base factual ou conhecimento de causa, preenche o vazio da mesa ou o silêncio entre cafés! Concretizando: no dia 16/01/2014, pelas 21:18, Rui Osório, honori‐dux recebeu uma mensagem de Vanda Mia com o seguinte conteúdo: “E diz‐me Osorio, o que achas tu que aconteceu? É que a mim passam me realmente poucas hipóteses pela cabeça, e sou‐te sincera que me custa mesmo a acreditar na versão que sabemos até agora”.
E que dizer da “sede de praxar” do arguido? Nada de muito especial, porquanto nos parece natural: o mesmo ocupava um lugar de topo numa organização que tem como seu principal objectivo a praxe; e seria o primeiro fim de semana de daquele género com o arguido na qualidade de Dux.
Dificilmente consegue, enfim, este Tribunal imaginar diálogos mais naturais, espontâneos e, na realidade, livres.
E de que descoberta da verdade falamos afinal? Não a teremos já? Quereremos, enfim, a verdade ou uma realidade que nos permita melhor aceitar o sucedido?
Importa esclarecer, com efeito, se existirá afinal uma verdade a descobrir, no sentido de algo não sabido ou esclarecido! E a resposta é que não há!
Existirão pormenores que os pais destes jovens gostariam de saber, de perguntar. Cremos que tivesse o arguido optado por falar com estes familiares, tê‐los‐ia possivelmente conseguido esclarecer, elucidar logo após o sucedido; e, nessa medida, teria possivelmente contribuído para alguma paz – aquela que, não duvidamos, os mesmos não sentem ou encontram.
Mas, realisticamente, seria realmente expectável esse comportamento pelo arguido? Um jovem com vinte e três anos confrontar as famílias de seis colegas falecidos, perante os seus olhos, numa noite de um fim de semana em que ele assumia, inequivocamente, um papel de liderança e responsabilidade? Com toda a atenção de um país colocada nas causas da morte absurda, inesperada, chocante, de seis jovens saudáveis numa conhecida praia do país? Poderá qualquer um de nós acreditar honestamente que, no seu lugar, com a sua idade, teria comportamento distinto?
Entende-se que não.
E, em todo o caso, não cabe a este Tribunal emitir juízos de valor sobre quaisquer opções do arguido que não possuam relevância criminal.
*
Nos termos do artigo do artigo 138º n.º 1 alíneas a) e b) e n.º 3 alínea b) do Código Penal.
1. Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa:
a) Expondo‐a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender–‐se; ou
b) Abandonando–‐a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir é punido com pena de um a cinco anos.
2. (…)
3. Se do facto resultar:
a)
(…)
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
Ora como se viu, não se vislumbram indícios de que:
a) Tenha o arguido sujeitado, pelo menos conscientemente, os colegas falecidos a um perigo que não pudessem eles próprios, do mesmo modo, avaliar e evitar:
as características – e perigos – do estado do mar eram, como os próprios assistentes admitem, audíveis, notórias antes mesmo de se entrar na praia; e nada permite concluir que o cansaço do dia, o álcool consumo (em medida não quantificável, sendo que a taxa apurada no corpo de Tiago o inibiria de conduzir, mas constituiria, como referência, ilícito de mera ordenação social e não crime, que requer uma taxa de álcool no sangue consideravelmente superior) ou qualquer outra circunstância incapacitasse alguns dos jovens, ou todos, de se aperceberem das características do mar;
b) Mantivesse o arguido sobre os colegas falecidos um qualquer efectivo dever de guarda, vigia ou assistência e os tenha, já no mar, deixado à sua sorte, daí resultando um aumento dos riscos que corriam: o ascendente que o arguido poderia ter sobre os seus colegas era apenas o que resultava da Comissão de Praxe, no âmbito daquilo que ela constituía. Não extravasava, na realidade, o âmbito da praxe, e do significado construtivo que teria para aqueles jovens. Repare-se que nem todos os representes de curso compareceram naquele fim de semana, e não consta que isso tivesse gerado qualquer reacção por quem quer que seja.
Não existem quaisquer indícios de que tenha o arguido fugido para onde quer que seja, e pois regressado.
De qualquer modo, tivesse o arguido podido ou conseguido ligar para o número de emergência no preciso instante em que os seus colegas foram arrastados para o mar, que tipo de salvamento seria realisticamente de esperar?
A polícia marítima demorou 40 minutos a chegar ao local depois de contactada.
Mas tivesse demorado metade, ou mesmo um quarto desse tempo, a tragédia estaria necessariamente consumada…
Assim, concluiu‐se necessariamente não estarem indiciados factos susceptíveis de consubstanciarem ilícito de natureza criminal, nomeadamente o de exposição ou abandono previsto e punível nos termos do artigo 138.º n.º 1 alíneas a) e b) e n.º 3 alínea b) do Código Penal.
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O Mar Mata.
Num país de exploradores oceânicos e pescadores, com metade do território virado para o mar e dois arquipélagos relevantes no oceano atlântico, poder‐se‐ia ter esta observação como – pelo menos – desnecessária.
Temo‐la, contudo, como essencial – e, por isso incontornável: resume, de modo extraordinariamente simples mas rigoroso, a factualidade em apreço.
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Persistirá, necessariamente, quem continue a invocar as supostas peças que não encaixam, rumores não esclarecidos, conspirações; ou, de outra modo, diligências não realizadas, testemunhas não (re)inquiridas.
A natureza humana isso propicia.
Tais convicções propiciam permitem atenuar, de algum modo, a estranheza e a dor, na medida em que insistem em causas humanas, malévolas, criminosas para uma tragédia que, com raízes meramente fortuitas ante pouco precavidos jovens, se torna particularmente triste, fria.
Este Tribunal não tem a pretensão de a todos convencer do seu entendimento. Mas tem como sua fundamental obrigação a todos disponibilizar, de modo acessível, o seu raciocínio – e, a final, conclusão e decisão.
Julga‐se que a decisão que cumpre anunciar surpreenderá poucos, porquanto o processo é, há vários meses, de acesso público, e a prova angariada ao longo das suas cerca de três mil páginas permite um juízo pessoal, esclarecido e isento sobre a exaustão das diligências e a ausência de indícios de crime.
As decisões judiciais esperam‐se, ao invés de dramáticas ou surpreendentes, o mero e lógico corolário da prova produzida, dos indícios recolhidos. Expectáveis, numa palavra.
Esperamos que a que agora se anuncia se insira nesse contexto de normalidade.
E, conforme se aventou em sede de debate instrutório, também o arguido será uma vítima, na medida em que se não vislumbra como não possa todo este processo ter um impacto profundamente negativo e traumatizante neste jovem.
Está vivo. Cumpre resistir à absurda tentação de o culpar, se por nada mais, por isso apenas.
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O Mar Mata. Todos os anos. Todos os dias.
Matou, in casu, seis jovens.
Se tivermos, contudo, a coragem de reduzir a factualidade à sua efectiva dimensão – profundamente trágica, sem dúvida, mas também relativamente cristalina e inteligível – talvez possamos, coletiva e finalmente, aceitar a absurda fragilidade da Vida, o reduzidíssimo controle dos elementos de que ela depende, a desconcertante aleatoriedade das circunstâncias que, em cada dia, hora, segundo, determinam se vivemos ou morremos.
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Um conhecido humorista nacional afirmou uma vez que vislumbra apenas um momento onde o humor não tem de todo lugar: o da morte de um filho.
Este entendimento, partilhado por quem dedica a divertir, espelha categoricamente o drama subjacente à perda de um filho.
O homem responsável pela presente decisão elabora-a na qualidade de Juiz – afortunadamente não na qualidade de pai, porquanto, nessa qualidade, ser‐lhe‐ia consideravelmente mais doloroso imaginar, sequer, a dor dos assistentes.
E, na qualidade de alguém cuja função é, tão distanciadamente quanto humanamente possível, apreciar factos, indícios ou provas à luz de uma Lei que se tem como um espelho relativamente fiel e digno da moral social vigente, não pode deixar de deixar as palavras finais a quem mais sofre – os pais dos jovens falecidos:
Procurem o mais difícil, o impossível até: a objectividade que o vosso coração quer, precisa, suplica afastar. E, quando tão perto dela conseguirem estar, não olhem apenas. Vejam. E, a seu tempo, assimilem e aceitem as evidências, a realidade – que não é extraordinária, maléfica, conspiratória. Apenas profundamente dolorosa.
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III. DA DECISÃO
Assim, e sem necessidade de mais considerações, determina-se a não pronúncia do arguido JOÃO MIGUEL PONTES GOUVEIA pela prática de seis crimes de exposição ou abandono previsto e punível nos termos do artigo 138º n.º 1 alíneas a) e b) e n.º 3 alínea b) do Código Penal, e o consequente arquivamento dos autos.
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Após trânsito, restituam-se os objetos apreendidos aos seus proprietários.
(Documento processado com recurso a meios informáticos e revisto pelo signatário)
4 de Março de 2015
O Juiz de Direito
(Nelson Escórcio)”