A companhia aérea, entretanto rebaptizada TAP Portugal, celebra amanhã 70 anos. A sua história faz-se de altos voos: transportou papas, estrelas de cinema e viu Saramago comemorar o Nobel a bordo. Nas alturas, houve quatro partos. Pôs as elites nacionais a viajar, e aproximou emigrantes e luso-descendentes de Portugal. Democratizou o andar de avião.
Mas também inclui momentos atribulados. Sofreu com a crise do petróleo nos anos 70. Como toda a aviação, ouviu soarem os alarmes da insegurança depois do 11 de Setembro. Pelo caminho, fica a época das sucessivas avarias. Dizia-se que TAP significava Três Aviões Parados ou Take Another Plane (apanhe outro avião).
Trouxe milhares de portugueses que quiseram regressar ao país, na ponte aérea com o Ultramar a seguir à revolução de Abril. A morte de 131 pessoas no Funchal, após uma aterragem falhada, em 1977, terá sido o momento mais negro.
Em 70 anos muito mudou, como se ilustra a seguir através de sete grandes transformações vividas na transportadora e na forma de viajar. Mas a portugalidade continua a correr-lhe nas asas. Companhia de bandeira, é um símbolo nacional.
Em 1955, dez anos após a sua fundação, assegurava oito rotas. Demorou quase 20 anos a somar um milhão de clientes. Chega a 1974 com 32 aviões e 40 destinos, em quatro continentes.
Hoje voa para mais de 80, em 38 países. E supera os 11 milhões de passageiros. Da vintena de trabalhadores em 1945, o grupo TAP, que engloba o transporte aéreo, a deficitária M&E (unidade de manutenção no Brasil), a Portugália ou parte da Groundforce, passou a mais de 12.800. Em curso está a terceira tentativa de privatização, com desfecho previsto até Junho. Depois de um 2014 conturbado – marcado pelos problemas técnicos do Verão e a ameaça de greve geral em Dezembro – os resultados do ano passado, que ainda não foram revelados, poderão fechar no vermelho. Até Setembro terá registado mais de 60 milhões de euros de prejuízo.
A Bordo com moda e glamour
Azuis e brancos, de corte militar, os primeiros uniformes – desenhados por Miss Summers, assistente de bordo da British Overseas Airways, que veio formar as tripulações portuguesas – evoluíram com a moda e com o crescimento da companhia. Em África, a Linha Aérea Imperial, entre Lisboa e Lourenço Marques (Maputo), exigia trajes tropicais, de cor caqui. Calções e botins contra mosquitos para eles, saias compridas para elas.
Completada com chapéu de coco, durou até 1953 e foi uma das fardas mais emblemáticas da TAP. No fim dos anos 50, a influência de Christian Dior dita o fim do look militarista. A farda de 1959 é inspirada no tailleur. Nos anos 70, o costureiro francês Louis Féraud, que vestia Brigitte Bardot e Grace Kelly, assina o novo vestuário.
Sucederam-se reformulações até 2005. Nesse ano, Manuel Alves & José Manuel Gonçalves concebem as fardas usadas até hoje. As tripulações nunca deixaram de vestir com glamour. E era isso que atraía as jovens que, aos 19 ou 20 anos, decidiam ser hospedeiras. Nos anos 40 e 50, preferia-se raparigas que tivessem conhecimentos de medicina e primeiros socorros – saberiam resolver emergências a bordo. Depois, um dos principais critérios era serem solteiras (não caía bem uma senhora casada estar tanto tempo fora de casa). A TAP oferecia salários acima da média e viajar era privilégio inacessível à maioria. Entre 1946 e 1954, só houve um comissário de bordo: Lopes da Silva, apelidado de Miss Lopes. Ter bom aspecto, ser jovem, falar inglês e francês e demonstrar alguma cultura eram, naquela altura, requisitos. Mantêm-se. Hoje, segundo os critérios da empresa, os candidatos têm de estar entre os 21 e 26 anos, ter de 1,60 a 1,90m de altura, perceber de informática e ser saudáveis. Passam por entrevistas e várias avaliações (de imagem, psicológica, médica e de línguas). E frequentam formações ao longo da carreira.
Transformação no aeroporto
Inaugurado a 15 de Outubro de 1942, poucos anos antes da fundação da TAP, o aeroporto de Lisboa é hoje fundamental no negócio da companhia. Serve de hub à operação: é por via das suas ligações com a capital portuguesa que a empresa distribui tráfego entre a América, África e Europa. Da autoria de Keil do Amaral, o projecto é contemporâneo de outras obras públicas impulsionadas por Duarte Pacheco, como o Estádio do Jamor ou a auto-estrada Lisboa – Cascais. Começou a ser construído em 1939, e custou quase 43 milhões de escudos. Dos mais de 18 milhões de passageiros que passam anualmente pela Portela, grande parte viajam na TAP. E o desenvolvimento da infra-estrutura influencia e é influenciado também pelo crescimento do transporte aéreo. As questões de segurança, cruciais na aviação, também estreitam as relações entre as companhias e as gestoras aeroportuárias, para garantir que todos os voos decorrem sem problemas.
Inicialmente as malas dos passageiros eram pesadas em grandes balanças. Hoje, há também controlo apertado para detectar armas, explosivos ou substâncias ilícitas. Dentro das aeronaves, uma das grandes alterações aconteceu na década de 80, quando a TAP lançou os voos azuis, nas linhas europeias e do Atlântico Norte. Passou a ser proibido fumar a bordo, por questões de segurança e de conforto. No ano 2000, a proibição estende-se a toda a rede. Outra das mudanças surge depois do 11 de Setembro. Para travar o terrorismo, introduzem-se limites ao transporte de líquidos na bagagem de mão.
Botões que fazem voar
Entre o cockpit do DC-3 Dakota, à esquerda, e o do A350, o novo aparelho que a TAP vai receber em 2017 (à direita) encontram-se várias diferenças que comprovam a evolução da navegação aérea nos últimos 70 anos. Em meados da década de 40, pilotar aviões exigia consultar tabelas para 'jogar' com o vento, usar instrumentos como o sextante de bolha, tirar notas e fazer mapas com informação útil para os voos seguintes. Era tudo manual. As pistas podiam ser de terra batida, pastos, alcatrão danificado, com falta de pessoal e deficientes condições de comunicação e de meteorologia. Atravessar as trovoadas tropicais ao longo da costa africana era “um petisco”, lembra o comandante João Augusto Graça, 94 anos e um dos pioneiros a voar na TAP. “Era obrigatório utilizar a navegação astronómica em trajectos desta natureza pois ainda não se sonhava com navegação automática”, escreve nas suas memórias. “Depois houve uma evolução muito grande”. “Há 30 ou 40 anos, era possível encontrar três pessoas no cockpit – o comandante, um oficial de piloto e um técnico de voo.
Recuando um pouco mais, eram cinco, porque havia também um responsável pelas comunicações e um navegador. Hoje, há só dois pilotos. Todas as outras funções foram automatizadas”, concorda o comandante Luís Esteves, director da frota de A330. Continua a haver muitos botões e comandos. Mas alguns só serão usados caso o sistema automático falhe e seja preciso accionar os controlos manualmente. Para evitar falhas, há redundâncias. “Um avião é uma máquina tecnologicamente muito evoluída, talvez das mais evoluídas que o ser humano constrói”, remata Luís Esteves.
Entre o Dakota e o A350
Quanto à frota da TAP, a viagem começa com um DC-3 Dakota. Oferecido pelo governo norte-americano a Portugal, o primeiro avião da companhia recém-formada chega a Lisboa a 28 de Maio de 1945. Dos anteriores usos militares na II Guerra Mundial, é adaptado para a aviação civil. Tem capacidade para 21 passageiros, mas nunca viajavam mais de dez. Em cruzeiro, atinge os 260 km/hora. E foi com esta aeronave que a empresa se lançou na sua primeira rota, para Madrid, a 19 de Setembro de 1946. E na segunda, a Linha Aérea Imperial. Iniciada a 31 de Dezembro, da Portela até à capital moçambicana, tinha 24.540 quilómetros. Era a mais extensa do mundo operada com DC-3: fazia 12 escalas e demorava 15 dias, ida e volta. Nos anos seguintes, a transportadora foi adquirindo mais aparelhos. A hélice: o DC-4 e os Super Constellation. Nos primeiros tempos, os aviões tinham WC mas não tinham ar-condicionado. Não havia rotinas de segurança e quase nenhum espaço para bagagens. Os berços chegavam a viajar pendurados em ganchos. A 16 de Julho de 1962 a TAP recebe o primeiro Caravelle, entrando na era do jacto. E vai valorizando a frota com vários modelos da Boeing, incluindo o 747, o 'jumbo' com dois andares. Mais tarde, a empresa portuguesa vira-se para a Airbus e hoje todos os seus aviões são da fabricante europeia. Com uma média de quase 300 voos por dia, dispõe de 77 aviões (incluindo os 16 da Portugália), entre A319 e A340, o de maior capacidade (274 passageiros). Em 2017, deve começar a receber os A350-900 XWB, com mais de 300 lugares e maior eficiência (consome menos 25% de jet fuel). As 12 unidades encomendadas permitirão reforçar a oferta de longo curso. “Os aspectos técnicos de um avião são radicalmente diferentes de há 30 ou 40 anos. Os materiais são mais modernos, resistentes e leves. Os motores são muitíssimo mais fiáveis e há mais electrónica a bordo, o que permite maior fiabilidade”, explica o director da frota A330 e comandante da TAP, Luís Esteves.
Cigarros e Caviar a Gosto
Nos primeiros anos, além da bagagem, muitos passageiros levavam farnel. Desconheciam que haveria refeições substanciais nos voos. Quando surgiu a primeira classe na TAP, o requinte era o prato principal. Nos anos 60 e 70 servia-se caviar e champanhe. O empratamento era feito na hora, em porcelanas da Vista Alegre, com talheres de alpaca, recorda Georges Jeunehomme, director de pessoal de cabine entretanto reformado, 42 anos de TAP. “Na económica, o serviço também era bom. Servíamos vinho, que outras companhias obrigavam a pagar ou nem sempre tinham. Distribuíamos cigarros, gratuitamente. Na primeira classe, ofereciam-se charutos”, relata. “A alimentação era muito baseada na gastronomia portuguesa, com bacalhau ou frango na púcara”, sublinha, embora explicando que a massificação do transporte aéreo e o aumento dos estrangeiros que viajavam na TAP obrigou a adaptações. “Se nos anos 80 ou 90 oferecêssemos lulas ou chocos aos passageiros brasileiros, eles não conheciam. Passou a haver comida mais internacional, como os steaks, tornedós, filetes de linguado, algumas comidas baianas para satisfazer o cliente brasileiro. E também refeições especiais, com baixas calorias ou sem glúten”. Nesta época, e perante os exigentes critérios de segurança alimentar, desenvolvem-se os serviços de catering. As refeições entram prontas no avião e são aquecidas antes de servir. Alguns estudos também mostraram que, por passarem muito tempo sentados, os passageiros devem evitar alimentação pesada. Hoje, nas viagens mais longas, há uma refeição completa e uma ligeira. Nas mais curtas, e dependendo do horário, pode haver almoço ou jantar. Ou um snack com sandes e bebida. A segurança, a moda, a funcionalidade e a aposta em materiais mais leves – para reduzir peso no avião e consequentemente o consumo de combustível – também se reflectiu nos utensílios a bordo, com predomínio do plástico e de descartáveis.
Da Primeira Loja ao Facebook
Escritos à mão, com nome e local de partida e de destino do passageiro. Assim eram os primeiros bilhetes dos Transportes Aéreos Portugueses, que, em 1948, abriam a primeira loja para os vender directamente aos clientes. Ficava em Lisboa, na esquina da Rua Braamcamp com a Praça Marquês de Pombal. A companhia continua a ter um balcão de vendas próximo do Marquês, onde trabalham 40 pessoas. Porém, os computadores e a internet revolucionaram o negócio da aviação. Hoje, 18% dos bilhetes da TAP são comprados online. Muitos são também transaccionados via agências de viagens. Depois de em 1974 ter iniciado o serviço computorizado de reservas e check-in, em 1996 surge o primeiro site da companhia. Nessa altura, 500 mil portugueses usavam a web regularmente. Um ano depois estreia os bilhetes electrónicos nas ligações domésticas (alargaria a todas as rotas em 2008). E passa a ser possível fazer o check-in telefónico. Os passageiros sem bagagem podiam ligar com antecedência de meia-hora e apresentar-se na porta de embarque dez minutos antes da partida. Apostando cada vez mais nas novas tecnologias, no Verão de 2009 a TAP lança a página oficial no Facebook. E foi através desta rede social que, perante a saturação das linhas telefónicas, contactou com centenas de passageiros impedidos de voar quando em 2010 o vulcão islandês Eyjafjallajökull encheu os céus de cinzas. Em média, a TAP demora 68 minutos a reagir aos comentários, respondendo a 96% das questões, por exemplo, sobre voos ou bagagem. Também já está no Twitter e no Instagram. E tem um canal no YouTube. Desde 2012 que os passageiros podem reservar passagens, ver dados das viagens e fazer check-in online na aplicação para smartphones. Mantém atendimento telefónico, mas o tele-check-in foi desactivado Em certas situações já nem é preciso imprimir o cartão de embarque. Pode receber-se por SMS ou e-mail. Para entrar no avião, basta mostrá-lo no telemóvel ou no tablet.
Novos tempos, outros Passatempos
Ler, conversar, fazer as palavras cruzadas das primeiras revistas de bordo, aproveitar os baralhos de cartas ou os dados que a tripulação distribuía aos passageiros que quisessem entreter-se: não havia muito mais para matar o tempo durante a viagem. O período das vendas a bordo trazia alguma emoção, que já esmoreceu. “Os aeroportos passaram a ter free-shops, o que permitiu aos passageiros perderem a ansiedade de chegarem a bordo e comprarem tudo”, conta Georges Jeunehomme. Com a era dos aviões a jacto, o entretenimento melhorou. Houve uma altura em que era possível alugar música e os auscultadores, depois recolhidos pela tripulação. Mas “a grande novidade foi o cinema”, descreve Jeunehomme, que foi um dos funcionários escolhidos pela TAP para ir a Nova Iorque passar dias inteiros a ver e a seleccionar filmes.
“Não se podia pôr um filme com desastres de avião, com nudez ou com questões religiosas polémicas”. Com o VHS, era passada uma fita na ida e outra na vinda, em monitores espalhados pelo avião. Hoje, no longo curso, cada passageiro tem o seu ecrã. E a programação permite escolher entre vários filmes, jogos, notícias.
Nalgumas aeronaves até é possível ver a descolagem e seguir a rota do avião. “Praticamente, a pessoa tem um escritório e uma sala de cinema no avião”, frisa o antigo director de pessoal de cabine, que nos últimos anos se habituou a ver os passageiros a usar portáteis, tablets e smartphones, para trabalhar ou em lazer. Com aviões mais modernos, rápidos e silenciosos, o conforto também aumentou. As cadeiras melhoraram – na classe executiva reclinam até parecerem uma cama -, os lavabos ficaram mais espaçosos. Das máquinas de barbear de corda para uso de passageiros e tripulação, de meados da década de 50, passou-se para kits de higiene oferecidos aos passageiros de executiva, com creme hidratante, venda para os olhos ou tampões para os ouvidos.
ana.serafim@sol.pt