Ao contrário da lógica da vida, primeiro vem a morte, com funeral e tudo. E ao contrário do que é normal na vida, há logo à partida uma constatação difícil de aceitar pela ciência: o protagonista de Pirandello, em cena no Teatro Nacional D. Maria II até 4 de Abril, comunica no início que vai morrer três vezes. E pelo menos duas delas vão ser naquele palco. «Morte e casamento, morte e casamento… queríamos andar sempre a saltar entre estes dois contrastes e a aplicar um fast forward na narrativa», explica Jorge Andrade, o encenador.
Será importante esclarecer que não deve ir à espera de uma peça biográfica sobre o autor italiano que dá nome ao espectáculo. Nem tão pouco deve ir à espera de ir ver uma peça dele. Essa ilusão já faz parte do imenso jogo de ilusões que a companhia Mala Voadora procura: «É uma autoficção. Temos brincado muito com a ideia de ilusão e andávamos com vontade de chamar a história como mais um elemento dessa brincadeira. Um dia, a falar sobre isso com o João Mota (na altura director artístico do D.Maria II), ele disse-me: ‘Vá mas é ler o Pirandello’. E, de facto, o universo de Pirandello é também de brincar. Serve-nos aqui como padrinho e usar o nome dele no título deu-nos liberdade criativa».
A partir da leitura do livro de Pirandello O Falecido Mattia Pascal, sobre um homem que perde tudo e aproveita que é dado como morto por engano para se tentar reinventar, a Mala Voadora dedicou-se a uma reescrita em torno das ideias de identidade, de ilusão e do próprio teatro. «O que não me agradava no livro era o pessimismo em relação à ficção. Na vida que o próprio protagonista inventava para viver, acabava por ficar alienado e tinha de voltar a viver ligado ao real. Queríamos mais festejar a possibilidade de ilusão do que haver esse balde de água fria».
Nessa festa de ilusões, as personagens assumem os nomes dos actores que lhes dão vida: Albano Jerónimo é Albano, Anabela Almeida é Anabela, Custódia Gallego é Custódia, e por aí fora. E assim como há várias camadas de texto, há outras tantas de cenário – uma tela que parece o fundo do palco, uma tela que parece uma casa e depois até a própria casa que se parece com a da tela – que representam várias camadas de realidade. «Vai ficando tudo mais tridimensional à medida que se vai mergulhando mais na ficção». Confuso? Pode parecer, e a ideia é que seja tão confuso como as próprias questões da identidade: «É uma entidade movediça. E é um manifesto sobre o teatro que fazemos», conclui José Capela, da Mala Voadora, responsável pelos cenários e também pela dramaturgia.