A cicatriz no joelho e a meia elástica até ao tornozelo são marcas de guerra que não enganam: o corpo de Nelson Évora passou por grandes desafios para voltar a saltar para lá dos 17 metros e obter mais uma medalha de ouro para Portugal, nos Europeus de Pista Coberta que decorreram no último fim-de-semana em Praga.
É um regresso das cinzas, ao mais alto nível, do campeão do mundo em 2007 e olímpico em 2008, após cinco intervenções cirúrgicas que o fizeram passar mais tempo na enfermaria do que na pista ao longo das últimas cinco temporadas.
«Não têm noção do que eu passei. Desanimei muitas vezes, mas nunca pensei em desistir. E agora estou totalmente recuperado e pronto para lutar nas grandes competições pelos primeiros lugares», soltou o novo campeão europeu de pista coberta à chegada a Lisboa, sedento de recuperar o estatuto perdido no triplo salto: «Tenho fome de saltos longos».
Não é para menos, agora que as lesões ficaram para trás. Aos 30 anos, Nelson Évora acredita que vai a tempo de fazer nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, o que uma fractura na tíbia o impediu de fazer nos de Londres-2012: uma segunda participação olímpica com o pódio em mente.
Não é impossível e nem é preciso recorrer ao exemplo de Jonathan Edwards, campeão olímpico aos 34 anos (Sydney-2000). O próprio Nelson Évora encontra motivação extra em metas que se afiguram inalcançáveis.
«É a maior lição que tive até hoje. Atingir o que atingi e ter de voltar à estaca zero», dizia numa entrevista ao SOL em Julho de 2013, após quase dois anos afastado da competição. E acrescentava: «Parece que estou a fazer atletismo pela primeira vez. É um desafio novo e agora é lutar por ele. Para que tudo aconteça outra vez».
Aconteceu outra vez no sábado, na República Checa, com a conquista da quinta medalha em grandes competições, o que vem consolidar a sua posição entre os atletas portugueses que subiram mais vezes ao pódio.
Antes da partida para um estágio de um mês nos Estados Unidos tendo em vista os Mundiais ao ar livre – a prioridade da época, em Agosto, no Estádio Olímpico de Pequim, de tão boas memórias –, Nelson Évora chegou ao ouro nos Europeus de pista coberta com um salto de 17,21 metros.
Ao longo do concurso, fez mais dois acima da fasquia dos 17 metros, sinal de que começa a apresentar uma consistência que não se via desde os anos dourados. Quando em Fevereiro registou 17,19 metros estava desde 2011 sem sair da casa dos 16 metros. E antes da breve aparição nesse ano já tinha passado outras duas épocas sem superar a barreira que separa os triplistas de topo dos restantes. Em síntese: em quatro temporadas, os problemas físicos só lhe deixaram espaço para uma breve incursão para lá dos 17 metros.
Em declarações ao SOL, o fisioterapeuta António Gaspar, que trabalha há muitos anos com a Selecção nacional de futebol, explica que «neste tipo de lesões de grande sobrecarga mecânica, a operação dá mais garantias de recuperação». Omaior risco surge «quando a situação se arrasta no tempo», como foi o caso do Nelson Évora, pois «pode implicar o fim de carreira de um atleta».
A descida ao inferno do saltador do Benfica começou depois de ter sido medalha de prata nos Mundiais de 2009, em Berlim, e levou-o ao bloco operatório para debelar uma primeira fractura de stresse na tíbia. Esteve fora de combate durante todo o ano de 2010 e voltaria ao activo em 2011 para tentar a presença nos Mundiais de Daegu.
Sentiu a desconfiança à sua volta e não se conteve quando, na derradeira oportunidade, obteve os mínimos exigidos para estar na Coreia do Sul, com um salto de 16,99 metros. «Algumas pessoas já me queriam enterrar. Já se tinham esquecido que sou campeão olímpico», disparou, sem identificar destinatários.
Dias depois atingiu os 17,31 nas Universíadas – fechando a primeira travessia do deserto sempre abaixo dos 17 – e chegou aos 17,35 nos Mundiais, que lhe valeram um quinto lugar com sabor a pódio. «Eu lá imaginava, há um mês e meio, que iria ficar em quinto no Campeonato do Mundo» – assim reagiu à Lusa.
Tudo se conjugava para o regresso à melhor forma nos Jogos Olímpicos de Londres, mas 2012 começou da pior maneira: durante uma sessão de aquecimento, a tíbia voltaria a ceder. No dia 24 de Janeiro foi operado pela segunda vez e o médico optou por recorrer a parafusos mais fortes para reforçar a estabilidade óssea. «Uma cirurgia deste tipo, um encavilhamento, deita abaixo uma pessoa, mas o Nelson é um super-homem», comentou o médico Nuno Craveiro Lopes. Évora escreveu um comunicado:«Está fora de questão participar nos Jogos Olímpicos. Mas que ninguém conclua com isto que estou acabado».
Em vez de defender o título conquistado em Pequim quatro anos antes, o saltador seria submetido a mais duas operações para remover os parafusos da tíbia. Voltaria a saltar sem dores 11 meses depois da primeira intervenção, mas na primeira metade de 2013 os resultados não apareceram e falhou os Mundiais em Moscovo. No início de 2014, nova lesão, agora no joelho. E nova passagem pelo bloco operatório. Canadianas, fisioterapia, readaptação ao esforço, voltar a saltar, recuperar confiança, todo o processo repetido mais uma vez. Ainda foi a tempo de ser sexto nos Europeus desse ano, mas só no mês passado conseguiria voltar à fasquia dos 17 metros. Diz o fisioterapeuta António Gaspar que «é preciso ter uma capacidade física e psicológica muito grande quando se passa por este calvário do Nelson Évora». Agora é campeão da Europa.