Nuno Gama: ‘Quero que os homens que desfilam para mim incendeiem tudo à sua volta’

Aos 12 anos, Nuno Gama começou a fazer roupa por necessidade: tinha crescido subitamente e nada lhe servia. Ainda assim, acreditava que seria arquitecto. Mas a sugestão de um professor de Geometria Descritiva fez com que, aos 18, trocasse a pacata Azeitão pelo Porto para estudar moda. A vida pô-lo à prova a primeira vez…

Os seus desfiles são muito antecipados, não apenas pela roupa, mas pelo espectáculo e pelo facto de apresentar um casting exclusivo, composto por homens – conhecidos e desconhecidos – diferentes dos habituais modelos, os ‘homens Nuno Gama’.

Isso é uma coisa que as pessoas imaginam que existe, mas não existe. Tenho todo o tipo de clientes. Desde o homem da Rússia, do Japão, de Angola… Portugueses e estrangeiros, alguns dos quais vêm aqui e, de uma só vez, fazem as compras da estação – e estamos a falar de quantias elevadas. Essas pessoas não cabem em cânones. Esses é que são os homens Nuno Gama, porque são eles que patrocinam isto tudo.

Mas é inegável que gosta de ter a desfilar para si homens mais musculados do que o protótipo do manequim.

Mas quem é que estabeleceu esse protótipo?

O mercado.

O que vejo são crianças de 16, 17 ou 18 anos a desfilar e eu não faço roupa para essas crianças. Se quiserem comprar a roupa que faço, não tenho nada contra, claro. Mas não são o perfil certo para as minhas criações. Faço roupa para um homem adulto. No casting para este desfile tivemos aqui centenas de pessoas. Pessoas que adoraram o tema Lusíadas, pessoas que por terem barba ou tatuagens a mais não podem entrar numa agência, mas que querem uma oportunidade de fazer parte. Os manequins que escolho são homens que se cuidam, que tomam conta do seu corpo, que estão a par das tendências e que gostam de se revelar através da roupa. A grande maioria até tem uma auto-estima muito fraca e sente um grande orgulho por poder participar nisto. No desfile há uma energia muito forte, um carinho gigante por mim [emociona-se]. É uma coisa de pai e amigo.

E são homens sempre muito sexy?

Mas nós afinal vimos de onde e como? Vimos das cegonhas? O sexo faz parte da nossa vida. Nunca disse ‘vou falar de sexo nas minhas colecções’. Mas sempre disse aos homens que desfilam para mim que quero que pisem a passerelle e incendeiem tudo o que está à volta. Quero que sejam charmosos, vigorosos, viris. Quero que se olhe para um homem que esteja a usar Nuno Gama dos pés à cabeça e se diga: ‘Que grande pinta! Isto não é um homem, é um TGV, é um avião!’. É isso que quero.

Um dos homens para quem desenha roupa é para si? Só usa roupa sua?

Sim. Mas costuma dizer-se que em casa de ferreiro espeto de pau…u

É quase difícil acreditar nisso quando olhamos em redor, para este espaço da Maison Nuno Gama, que inaugurou há cerca de um ano. Como nasceu este projecto?

Nasceu porque continuo a acreditar que vale a pena e que tenho de dar o melhor aos meus clientes. Eu evoluí, os meus clientes também evoluíram, cada vez tenho mais clientes de uma estratosfera mais exigente e faz sentido ir ao encontro disso. Para vender o que vendo, tenho de ter condições. Não posso ir para a Feira da Ladra.

É um investimento avultado?

Enorme. Mas faz sentido porque era uma exigência do próprio cliente. Sentia que havia muito clientes que achavam que tinha umas coisas giras, mas que a loja ainda não estava ‘bem ao seu nível’. É preciso fazer esse exercício de nos colocarmos ao nível daquilo que queremos ser. Aqui tenho loja, ateliê, espaço para atender clientes privados, o showroom para os clientes de lojas… E ainda uma barbearia e, já que a minha avó inventou as tortas de Azeitão, terei um espaço de restauração. É um conceito.

Centralizou todo o seu universo aqui. Esta é também uma forma de dizer que a marca Nuno Gama está bem e com saúde?

Não tenho mais vida além disto. Não tenho uma casa de férias. Há anos que nem férias tenho. Levanto-me todos os dias às 6h da manhã e saio daqui à noite; estou aqui de segunda a sábado, na maioria das semanas também venho ao domingo. Não tenho rigorosamente mais nada. Tudo o que tenho está aqui. Nem tenho tempo para ter mais nada. Mas claro que tenho a percepção que, quando fechámos o outro espaço no Príncipe Real, diziam que tinha falido e que ia desaparecer do mapa…

Sente que é sempre alvo desses olhares, desse ‘diz que disse’?

Somos assim em relação a muita coisa. As pessoas dizem piadas, troçam, deitam abaixo, inventam histórias… e acham que isto não nos chega aos ouvidos. Tudo se sabe. Vejo pessoas que não entram aqui porque acham que isto é estranho como roupa, porque acham que as pessoas aqui dormem de determinadas maneiras e têm uma série de valores… O meu mundo é muito normal. É igual a qualquer outro mundo. A todos os níveis. Para mim, é muito grave dizer-se que o mundo da moda é um mundo, por exemplo, só de droga e de favores sexuais, como em tempos andou aí uma reportagem a dizer. Isto é trabalho.

Qual foi a pior história que ouviu sobre si?

Foi uma das maiores bofetadas de luva branca da minha vida. Ainda vivia no Porto e tinha acabado de chegar de Paris, uns amigos foram buscar-me e fui directamente para um restaurante jantar. Nas minhas costas estava uma mesa onde uma sujeita começa a falar de mim, a dizer que me tinha visto na noite anterior e que eu estava isto, aquilo e aqueloutro. Em poucos minutos deu cabo de mim, disse o pior que se possa imaginar… fiquei muito triste, só me questionava porque é que alguém que nem me conhece tem necessidade de me destruir daquela maneira. Claro que o jantar ficou estragado, pedi aos meus amigos para me levarem a casa. Mas quando estava a sair, voltei atrás, fui à mesa, e disse: ‘Boa noite, queria apresentar-me porque acho que é muito grave que tenha este tipo de testemunhos e assim fica a saber quem eu sou e pode ser que nunca mais me confunda. E tenha cuidado porque pode estar a afectar pessoas e eu até posso acusá-la de difamação’. Isto com o restaurante todo em silêncio, a olhar. E de seguida paguei uma garrafa de champanhe e pedi para entregarem na mesa da senhora.

A colecção que vai apresentar este domingo, em mais uma edição da ModaLisboa, é inspirado n’Os Lusíadas.Porquê?

Desde os ensaios da anterior ModaLisboa que estou a trabalhar neste tema. Acho que já li Os Lusíadas tantas vezes que quase os sei de cor. Gosto muito de história, o meu pai plantou em mim essa semente – que não é uma semente, é uma sequóia gigante! Facilmente fui ver qual a conjectura que tínhamos na altura e confesso que, se já tinha muito orgulho em ser português, fiquei mais orgulhoso. Há qualquer coisa de especial nesta terra pequenina. Faz-me imensa confusão ainda não termos percebido que podemos ser fortes.

Gostamos pouco de nós?

Temos de trabalhar nisso. E aponto o dedo aos nossos políticos que não fazem nada por isso. É essencial mudar esse olhar. Não podemos continuar a ser um país constantemente à procura de tudo no exterior. Estamos sempre a engordar os outros. Temos de mudar. Temos um país lindíssimo, uma das melhores gastronomias do mundo, somos um povo afável com uma história fabulosa.

Em que medida é que isso se reflecte na moda?

A Europa perdeu quase toda a mão-de-obra especializada na área têxtil. Hoje o ‘Made in Italy’ é uma mera reminiscência de um passado glorioso. Nós somos dos poucos que ainda conseguem produzir bem e para as melhores marcas do mundo. Gostava que os portugueses passassem nas fábricas onde eu vou para perceberem que as marcas que tanto elevam são feitas aqui, por pessoas que falam a mesma língua que nós, que se cruzam connosco na rua, que têm os mesmos anseios que nós. Somos um excelente fabricante a nível mundial. O fenómeno moda Espanha que existe no mundo deveria ter existido em Portugal e não em Espanha. Se tivéssemos tido governos capazes de perceber isto, claro. A moda, no mundo, movimenta milhares de milhões. Como é que ainda não percebemos isto? Ainda por cima, nós, portugueses, temos um fascínio pelo bom e pelo belo. Por isso é que as marcas estrangeiras têm sempre um sucesso enorme em Portugal.

Já as marcas nacionais, sobretudo as de criador, estão no pólo oposto.

Toda a gente desistiu. Eu continuo a acreditar em tudo o que acreditei toda a vida. Muitas vezes a vida obrigou-me a equacionar tudo e felizmente tive uma mãe que me disse: ‘Nem penses, desenrasca-te, reinventa-te, mas continua!’. Claro que muitas vezes acordo e sou tomado pela negatividade, mas se não se vende hoje, vende-se amanhã. E também não conseguimos reinar quando há demasiados quintais. Não faz sentido, num país tão pequeno, que existam duas semanas de moda! u

É sempre conotado com a utilização da simbologia tipicamente portuguesa, como os lenços de Viana, o Galo de Barcelos, a Nossa Senhora de Fátima, entre outros. O que o levou a usar essas imagens?

Foi a minha família. Foi o facto de me chamar Gama. Meteram-me esse bichinho no sangue. Passei a minha vida a fazer espadas e a imaginar viagens transatlânticas. Além disto, tive um pai que gostava muito de história. Lembro-me de ser um miúdo quando o Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro e chorei de orgulho! [emociona-se]. Aquilo foi uma coisa tão transcendente! De repente, Portugal estava a ser olhado com respeito pelo mundo inteiro.

Não se sente refém desses símbolos?

Não, porque é uma coisa que continua a fascinar-me. Continuo a tentar perceber, por exemplo, porque é que temos uma esfera armilar. Continuo a ler Camões, Fernando Pessoa… Quero fazer parte desse património. É aqui, neste Portugal dos pensadores e dos desafios que me revejo e que quero estar, não no Portugal medíocre.

Como surgiu a ideia de brincar com o Galo de Barcelos, com o qual fez uma colecção brincando com o duplo sentido de cock?

Tive um sonho em que vi a silhueta do galo transformar-se de várias maneiras. No dia seguinte, cheguei ao ateliê e deitei a colecção, que já estava feita, toda fora. E recomecei. Peguei naquela história com a consciência de que o galo era um símbolo português que era visto de uma forma popularucha, mas com vontade de fazer uma abordagem diferente. Queria brincar com aquele símbolo. A abordagem que fiz podia ser vista de vários ângulos: qual o desempenho sexual dos portugueses? Qual é a imagem sexual que têm de nós? Havia t-shirts a dizer ‘Cock-a-holic’,’ Diamond cocks are girls best friends’, ‘Robocock’… Teve um sucesso enorme.

Não há símbolos sagrados?

Acho que temos de saber rir. Eu próprio por vezes estou tão compenetrado nas minhas coisas, que os meus amigos me dizem: ‘Ri-te!’. Pareço muito calmo, mas sou extremamente nervoso. Falta-me sempre tempo para fazer as coisas que tenho para fazer. Ainda hoje, desta folhinha onde estão as coisas que tinha para fazer, fiz três e ainda me faltam oito. E quando sair daqui vou a correr para o hospital visitar o meu irmão que teve um AVC. Não sou médico, sei que não posso fazer nada, mas quero ir dar-lhe um abraço. Mas também sei que não posso, com isso, falhar aos compromissos que já tinha agendado, como esta entrevista.

Foi com esse mesmo espírito que subiu à passerelle da ModaLisboa dias depois de o seu pai ter morrido?

Foi muito difícil… Antes de ele morrer, vim a Lisboa e o meu pai não me reconheceu. Foi como se, de repente, a vida me tivesse arrancado violentamente algo que me era fundamental e basilar. Tive de me obrigar a pensar que não era essa a memória que queria ter dele. Tive quase para cancelar a ModaLisboa porque precisava de tempo e de espaço. Mas dois dias depois estava a fazê-la. Sem saber se a minha mãe iria, ou não, porque havia aquela coisa de parecer mal ela ir. E quando dei a volta à passerelle… lá estava ela. Ela que, dois dias antes, no funeral do meu pai, quando acabou a missa, se levantou, foi ter com o meu pai, agarrou-se a ele e agradeceu a vida, o casamento, os filhos, os netos, a felicidade, o amor… Foi tão bonito!

O facto de ter tido mais oportunidades para se preparar para a morte do seu pai fez com que a morte da sua mãe, pouco depois, tenha sido vivida de forma diferente?

Claro que sim! O meu pai esteve doente muito tempo. Falhou três ModaLisboa, salvo erro. A minha mãe, mesmo que não estivesse bem, ficava tão feliz de me poder ver e tão orgulhosa, que ganhava força para ir à ModaLisboa. Ela costumava dizer que das coisas melhores da vida era o final do desfile, quando eu vinha… [emocionado, chora] e via as pessoas a baterem palmas ao meu trabalho. Mas em relação ao meu pai, quando o meu irmão João me ligou, perguntei logo: ‘O pai morreu, não foi?’. Com a minha mãe foi diferente…

Depois da morte do seu pai mudou-se para Lisboa para poder estar com a sua mãe?

Vim para Lisboa porque queria voltar para casa, queria recuperar algum tempo perdido com a minha mãe e com a minha família toda. Tinha muitas saudades da Arrábida, aquela serra dá-me energia. A morte da minha mãe foi um grande embate, não estava preparado. Há figuras na nossa vida que nos marcam para sempre, pessoas de um amor incondicional a tudo e todos…

Era isso que tornava a sua mãe tão especial?

Ela era uma mulher que não criticava nada nem ninguém. Aceitava tudo e todos sempre com sorriso. Para ela estava sempre tudo bem, porque o amor incondicional que ela tinha pelas pessoas e pelas coisas que fazia se sobrepunha a tudo o resto. Ela tinha problemas de saúde, mas nunca se queixava. Tinha uma enorme bondade e nunca desistia. Era uma pessoa especial, mas isto é uma coisa que já vem de trás, da mãe dela. A minha avó Bina foi a criadora das tortas de Azeitão. E lembro-me que era a avó que toda a gente queria ter. Ela sempre esmagou toda a gente à sua volta porque era uma mulher gigante. E depois veio a minha mãe ocupar esse trono.

Disse inúmeras vezes que a sua mãe era a sua melhor amiga.

Para a minha mãe a prioridade foi sempre a família. Por mais que eu disfarçasse a voz num telefonema, ela sabia que não estava bem e dizia sempre a coisa certa para me dar força. A minha mãe dizia-me, desde pequeno, para eu nunca me esquecer que era um Gama e como Gama nunca podia desistir, que ia sempre descobrir algo melhor porque tinha capacidades que ainda nem tinha percebido que tinha. Tive sempre ali uma pessoa que acreditava tanto em mim que eu senti sempre que tinha o brevet para voar.

E quando ela morreu sentiu que lhe tinham cortado as asas?

[silêncio] Ainda tenho muitos dias em que penso: ‘Vou ligar à minha mãe’. Gostava de partilhar com ela as coisas boas da minha vida.

Quando perdeu pai e mãe num curto espaço de tempo, e sendo tão ligado à família, precisou de recorrer a ajuda?

Eu tenho uma grande ajuda. Está aqui… [puxa um colar que está escondido por debaixo da t-shirt e que tem um pendente em forma de frasquinho]. São as cinzas da minha mãe, que estão sempre comigo. Todos os dias lhe dou um beijinho de bom dia, todos os dias é a única pessoa a quem dou a boa noite. É a pessoa com quem acho que rezo – à minha maneira –, a quem peço ajuda… Mas também é a pessoa que perfumo todos os dias porque a minha mãe gostava muito de perfume. Borrifo sempre perfume para aqui e digo: ‘Toma lá, vaidosa!’. Converso sempre com ela e peço-lhe que me ajude a encontrar capacidade para seguir em frente. Tenho a certeza que ela está a zelar por isso. Para mim, a minha mãe será sempre eterna.

Na sequência dos seus 20 anos de carreira fez um desfile inspirado na Arrábida, local onde nasceu e cresceu, entre cinco irmãos. A serra foi assim tão importante?

Quando fiz 20 anos de marca, fiz uma grande introspecção que me fez perceber o que era essencial nisto tudo. E o essencial sou eu e a minha marca. Quando percebi isto, achei que fazia sentido fazer uma colecção com este tema. A Arrábida tem uma presença fortíssima na minha pessoa e no meu carácter, tal como a minha família, que é o meu pilar. Senti sempre o peso de honrar o nome da família, influenciado pela primeira vez pelo meu avô que me levou ao Mosteiro dos Jerónimos e me pôs à frente do túmulo do Vasco da Gama. Para mim, o símbolo disso é a Arrábida.

Mas as suas primeiras recordações são já marcadas pela Arrábida? Ou mais pelo cheiro das Tortas de Azeitão da sua avó?

Um bocadinho disso tudo. Crescemos na Arrábida e essa é capaz de ser a minha primeira recordação. Mas as tortas também sempre fizeram parte de nós. E eu nem as comia, porque nunca fui muito doceiro. Mas recordo-me de ver a minha avó sempre a trabalhar nas tortas e de o meu pai também dar uma ajuda. Mas depois deu-se o 25 de Abril e foi difícil para a minha avó gerir o negócio, e como ela já tinha alguma idade, encerrou a fábrica. Mas lembro-me de outras coisas, sobretudo ligadas a animais. O meu avô paterno teve um galgo preto com umas manchas tom de ferrugem que me adorava. Foi por isso que, quando decidi que queria ter um cão, escolhi um galgo, a Maria Gama.

Gostava muito de animais?

Adorava! Uma vez fui ao mercado de Azeitão com o meu pai e havia um senhor que tinha uma cabrinha branquinha, presa por um cordel. E eu comecei a dizer ao meu pai que a chibinha era linda, mas o meu pai disse logo ‘Nem penses!’ porque em casa já era um pandemónio de animais. Cheguei a casa, fui ao meu mealheiro, tirei o dinheiro e voltei ao mercado. O homem achou-me tanta graça que me ofereceu a cabra e uma trela. Claro que quando cheguei a casa o meu pai passou-se. Mas a cabrinha ficou, apesar de berrar desalmadamente. Chamei-lhe Branquinha e andava com ela para todo o lado, mesmo depois de ela crescer.

E mesmo depois de o Nuno crescer?

Sim. Aliás, como eu cresci muito cedo, o meu pai mandava-me às festas de garagem que havia ali na zona para tomar conta das minhas irmãs. Numa dessas festas fui no carro de um amigo do meu irmão mais velho, um Volkswagen. Mas quando lá chegámos não me deixaram levar a cabra, obrigaram-me a deixá-la no carro e, claro, ela comeu aquilo tudo! O dono do carro passou-se e disse-me que, depois u daquilo, tinha de lhe dar fava seca e água. Eu fiz isso, sem saber o que estava a fazer. A fava inchou, rebentou-lhe o estômago e a cabrinha morreu. Tive um desgosto gigantesco e ainda hoje tenho remorsos. Nessa altura fazia funerais a tudo quanto eram animais, mesmo os que não eram meus mas que encontrava mortos. O jardim dos meus pais parecia um cemitério com cruzes de animais que eu tinha enterrado. Mas para a Branquinha fiz um funeral como deve ser, com padre e tudo!

Era nessa altura que disputava com os seus irmãos um famoso sobretudo antracite do seu pai?

Era um Príncipe de Gales antracite com uma risquinha mel. Já cheguei a ter um casaco numa colecção com um tecido muito semelhante. Esse sobretudo andava à vez entre nós. Dependia de quem o apanhasse. Lembro-me que o meu irmão João, que é quase dez anos mais velho que eu, chegava a andar com o sobretudo no Verão. Mas eu adorava irritá-lo e tirar-lho.

Mas ainda não ligava nenhuma à moda? Com que idade começou a fazer a sua própria roupa?

A moda era uma coisa que nem me chegava aos ouvidos, tirando quando a minha mãe falava dos Arié, na Avenida da Liberdade, e da Casa Africana que era da nossa família. Mas achava que eram coisas que não me diziam respeito. Aliás, para mim era um filme de terror quando tinham de me comprar roupa: as calças ficavam curtas, as mangas também, os sapatos não serviam porque eu já calçava o 45. Foi por isso que comecei a fazer roupa, por volta dos 12 anos. Mas eu sempre desenhei. Ofereceram-me as primeiras tintas e paletas muito cedo. A minha irmã mais velha tem um quadro que foi o primeiro quadro a óleo que pintei, penso que em 1982. Sempre achei que seria pintor ou arquitecto.

O seu primeiro emprego, aliás, foi mais ligado à pintura…

Para aí aos 14 anos trabalhei numa fábrica de azulejos em Azeitão, a pintar painéis. Ainda hoje há imensas pessoas com painéis meus em casa. Alguns gostava de recuperar, como um painel de São Lourenço, muito grande, que pintei.

Quando começou a desenhar a sua roupa sabia o que fazer?

Não. Mas sabia do que gostava. E depois tinha uma senhora, que vivia ao pé dos meus pais e que eu adorava, a Dores. Era ela que aturava os meus pedidos. E depois, mais tarde, já não me lembro como, conheci o Alain, da Mr. Wonderful, e ele viu uns fatos de banho que eu pintava à mão. Era um miúdo ainda, a costureira cortava os tecidos e eu pintava-os. Ele viu aquilo e perguntou-me se podia fazer mais. Ele percebeu que podia vender um produto exclusivo, feito por um miúdo. Acho que eram vendidos por uns 30 ou 40 contos. Fazia aquilo, mas continuava sem pensar em trabalhar em moda. Simplesmente gostava mais do que pintar um quadro porque assim via as pessoas a usarem coisas minhas. E ganhava umas coroas. Lembro-me que também tinha umas t-shirts com um boneco gadelhudo que eu criei e outras com um anjinho papudo. Foram um sucesso. Devo ter feito mais de 100 ou 200 só dos anjos.

Onde gastava o dinheiro que ganhava?

A comprar mais materiais.

Quando decidiu ir para o Porto o seu pai não achou piada à ideia…

Não. Fez-lhe imensa confusão a ideia de eu ir para o Porto estudar moda. Foi complicado, mas poucos dias depois aceitou porque toda a família me apoiou.

Apesar desse apoio familiar, como foi a mudança para um menino que era tão ligado à família?

Não sabia fazer nada, não sabia cozinhar – que hoje em dia adoro. Mas foi uma descoberta maravilhosa. Eu ia ser arquitecto e foi o professor Amílcar Cabral, de Geometria Descritiva, no liceu em Setúbal, onde estudava, que me sugeriu ir para Moda. Eu enchia os cadernos com desenhos e, na altura, como era colega do Luís Buchinho, trocávamos imensas ideias. Foi este professor que nos disse que devíamos era ir para o CITEX, no Porto. E fomos. Cheguei lá e senti que finalmente era maior de idade e podia ir descobrir a minha vida. Fiquei fascinado por tudo. Na altura o Porto era muito diferente de tudo o que eu conhecia. Foi uma descoberta da minha própria vida e do meu trabalho. Lembro-me que passei os primeiros dias de aulas numa fábrica a dar nós em cordéis. E eu só queria era desenhar.

Foi difícil resistir à boémia?

Os meus amigos diziam que existiam dois Gamas: que eu ia deitar um e sacava o outro debaixo da cama, porque nunca tinha sono. Havia o Griffon’s, o Swing, o Dallas… As pessoas, no Porto, tinham uma onda mais fashion… Claro que saí, mas tínhamos uma sobrecarga muito grande no CITEX e só podíamos dar duas faltas por ano e tínhamos de ter aproveitamento. E por vezes tinha saudades, sobretudo no Verão, porque estava habituado à minha Arrábida. Mas tive de fazer opções. Não pude deixar que a saudade me controlasse. E tinha a minha mãe que me dizia sempre que eu estava ali porque era ali que tinha de estar.

Começou logo a trabalhar, ainda durante o curso?

No segundo ano do CITEX já tinha clientes e já era conhecido no Porto. O António Sá Fernandes, que era dono de umas fábricas com colecções de homem, foi dar uma palestra ao CITEX e mostrou-se disponível para receber estagiários. Uns dias mais tarde liguei-lhe e disse que gostava de estagiar na fábrica dele. Fui com uma mala de viagem gigante com coisas que já tinha feito e ele aceitou-me. Mas como eu tinha aulas o dia todo, trabalhava à noite. Um mês depois, ele mandou-me para a Première Vision, uma feira gigantesca em Paris, para comprar os tecidos para a próxima colecção. Quando desci as escadas rolantes e vi aquilo nem queria acreditar. Nessa primeira colecção ainda não tive total liberdade, mas depois passei a ter e as colecções tiveram imenso sucesso. Quando acabei o CITEX concorri a um prémio jovem e não me deixaram porque diziam que eu já trabalhava há muito com a indústria. Essa colecção que queria apresentar no concurso levei à ModaLisboa, em 1990.

O que recorda dessa estreia?

Ai Jesus! Foi no Jardim do Tabaco. Mas antes disso já tinha passado pelas Manobras de Maio, como manequim. O meu primeiro desfile foi num evento organizado pela Teresa Guilherme, pelo Rui Horta e pelo José Manuel Trindade. Foi numa noite de lua cheia em Agosto, com um calor incrível, no Padrão dos Descobrimentos, ao som da Carmina Burana. Os meus homens entravam todos de archotes nas mãos, com umas camisas com golas inspiradas no estilo manuelino. Depois houve uma segunda edição deste evento e a ModaLisboa no Jardim do Tabaco.

Como foi?

No meio da roupa de homem, fiz um vestido de sereia. A manequim meteu o tacão na rede que fazia o rabo do vestido e não andava. Teve de ser um outro manequim a levá-la ao colo. Toda a gente achou que aquilo era encenado e foi um sucesso. Veio a imprensa estrangeira toda! Pessoas como a Sylvie Grumbach, o Christophe Campagnol, que era director da Yohji Yamamoto. Até essa altura sentia que muita gente olhava para mim e achava que eu era parolo. As pessoas escarneciam do meu trabalho por eu usar coisas portuguesas. Mas, no final, a imprensa estrangeira veio falar comigo e os jornalistas disseram-me que, de todos, eu era o único que falava uma linguagem própria. Os outros podiam estar em qualquer local do mundo, eu não. E disseram-me que tinha pernas para andar. Nessa altura tive peças vendidas para o mundo inteiro, do Japão a Espanha. Entretanto abri uma loja no Bairro Alto. Lisboa, na altura, era a cidade do Frágil, do Manuel Reis, da Margarida Martins, do Mário [Matos Ribeiro] e da Eduarda [Abbondanza]…

A malta de Lisboa.

Pois. Havia muito esse complô de Lisboa, que estava próximo da informação, que controlava a imprensa. Perfurar isto era perfurar o muro de Berlim. Eu, o Buchinho, o Júlio Torcato, o Nuno Eusébio… éramos os putos do Porto. E foi engraçado porque sobressaímos logo muito e começou-se a falar muito de nós. Vínhamos muito bem formados do CITEX.

A loja de que falou foi um espaço que foi sucessivamente assaltado, até que encerrou.

Exacto. Até uns marcos de cimento me atiravam pelas montras e levavam tudo. E ninguém via nada. Ainda cheguei a ouvir histórias de que eu é que era esperto, que assim levava os seguros. Mas nessa altura havia lá dinheiro para seguros! Mas alguma coisa ficou dessa altura: ainda hoje só tenho a nova colecção na loja na véspera do desfile e, nessa noite, durmo aqui.

Por que ficou no Porto após o curso?

Por um lado pela vida profissional. Na altura tínhamos muita dependência das fábricas, havia muito trabalho para fazer, coisas como a Portex e a FIL Moda e as fábricas estavam todas ali. Por outro lado, fui para o Porto com 18 anos, era um miúdo, fiz-me à vida ali, sozinho, e isso deu-me uma ligação ao sítio. Na altura, os meus amigos estavam ali.

Em 1998 um incêndio destruiu o seu ateliê e todo o seu trabalho.

Senti o que não desejo a ninguém, nem à pessoa que mais me possa odiar na Terra. Mas, ao mesmo tempo, isto permitiu-me entender o que é este mistério da vida e o que andamos aqui a fazer. Aprendi a relativizar as coisas e a perceber que eu sou a minha riqueza e a minha própria biblioteca. Tudo o que já fiz, posso sempre voltar a fazer e com uma vantagem: posso fazer melhor. Claro que, na altura, uacordava e pensava: ‘E agora o que vou fazer?’. Nada mais fazia sentido. Tinha passado muitos anos a criar colecções, a produzi-las, a construir a marca. E depois, um incêndio levou tudo.

Como aconteceu?

Foi à hora de almoço. Eu vinha do Mercado Ferreira Borges, do ensaio do Portugal Fashion. No ateliê estava a minha assistente e uma outra rapariga que trabalhava connosco. Quando cheguei, a minha assistente disse-me que tinham chegado os sapatos do desfile e fomos vê-los. De repente, chega a outra miúda, muito aflita, a dizer que estava tudo a arder. Chamámos logo os bombeiros, que eram logo ali, mas quando chegaram já não havia nada a fazer… Era um prédio antigo, cheio de madeiras e tecidos…

Ficou ali, a ver o seu trabalho arder?

Assim que foi possível, fui com os bombeiros lá dentro porque eles não conheciam o espaço e eu estava farto de me sentir impotente. Nunca mais me esqueço que, numa das salas, abri uma portada e entrou uma língua de fogo gigantesca. Felizmente estava um bombeiro atrás de mim que me puxou. Parecia uma coisa de filme. Passei muito tempo a tentar perceber qual o sentido disto tudo e a pensar se deveria voltar a apresentar colecções.

Quando surge a vontade de voltar?

Foi o Comendador Joaquim Cardoso, da Maconde, que me convidou para trabalhar com eles. Sempre houve a intenção de, em parceria com a Maconde, produzir e distribuir Nuno Gama e chegámos a fazer algumas coisas, mas entretanto o Comendador saiu do grupo e eu acabei por sair também, em 2005. Fui desenhar a Pinho Vieira. Acho que foi a primeira vez, em Portugal, que alguém foi desenhar a marca de um colega.

Nessa altura a marca Nuno Gama tinha desaparecido?

Não, durante algum tempo fazia encomendas especiais. Depois, voltei a apresentar colecção, penso que em 2003, numa edição da ModaLisboa em que a passerelle ficou coberta com tapetes de flores de Viana. Mas foi a passagem pela Maconde e todas as pessoas com quem trabalhei ali que me fizeram crescer. E voltar.

A verdade é que, em Portugal, foi sempre o criador mais próximo da indústria. Porquê?

Sempre. Gosto do trabalho de ateliê – sempre o fiz e continuo a fazer. Mas sou uma pessoa da indústria. A minha estrutura mental está formatada para a indústria. Para mim é muito fácil pegar num papel e desenhar uma peça que tenha tudo e mais alguma coisa. O difícil é delapidar, é perceber o que é viável, o que gasta mais tecido, o que não é sustentável. Gosto dessa ginástica mental, gosto dessa procura do equilíbrio do produto. E sou muito organizado a trabalhar. Uma peça minha começa por ser desenhada à mão, depois é digitalizada e depois faço a memória descritiva de cada peça, que serve um pouco como instruções para a fábrica. Faço tudo isto sozinho. Uma colecção minha pode ter cento e tal peças.

Tendo tido pais tão marcantes, gostava de ser pai?

Gostava mesmo muito…

É esse desejo de paternidade que faz com que fale sempre com tanto carinho dos seus sobrinhos e que, em tempos, tenha tido vários afilhados de instituições, em Portugal e em São Tomé?

Durante muitos anos, porque fazia mergulho, ia para São Tomé de férias e foi lá que conheci o Agostinho, que apadrinhei. Lembro-me da vez em que lhe ofereci uma bicicleta e depois fui descobri-lo a dormir abraçado a ela! Ainda falei com a minha mãe sobre a hipótese de o adoptar plenamente, mas depois houve uns problemas burocráticos e não foi possível. Mantemos contacto e ainda há pouco tempo ele me disse que um dia me vinha visitar porque queria pagar o dinheiro que sabia que eu tinha gasto para pagar os seus estudos. Em Portugal, tudo aconteceu num hipermercado, quando me cruzo com uma daquelas acções de instituições, meti conversa com o miúdo, mas a criança não me respondia. Até que veio uma senhora que me disse que o menino não falava porque tinha uma história complicada. Naquele momento fiquei ligado àquela criança para o resto da vida. Fui visitar a instituição e, depois de me explicarem que se quisesse podia apadrinhar uma ou mais crianças, contribuindo para a sua formação, ele vira-se para mim e pergunta-me se quero ser o padrinho dele… [emociona-se]. Saí dali e reuni os meus amigos todos para que ajudassem aquelas crianças. No outro dia, um desses irmãos veio visitar-me: é casado e já tem filhos!

Tendo já passado pelos momentos difíceis por que passou, que olhar consegue ter sobre os 50 anos que cumpre em 2016?

Sempre tive a consciência e até me fascina perceber que há um princípio, um meio e um fim. Mas a minha crença é que provimos de uma fonte energética pura e que temos de cá andar as vezes que tivermos necessidade de renovar essa energia. Acredito na reencarnação, por isso acredito que estou sempre com os meus pais. E que eles estarão eternamente comigo. Não me assusta nada a morte. Até porque, eu próprio, já passei por muitas lotarias próximas…

Como assim?

Estive um ano e meio paralisado numa cama, fui operado quatro vezes à coluna…

O que aconteceu?

Foi antes da Expo 98. Só pensava que tinha de arranjar maneira de me curar e de me pôr a andar dali para fora. Tive uma hérnia discal. Fui operado a primeira vez e não correu bem, operaram-me uma segunda vez, uma terceira e uma quarta e nunca correu bem. Os médicos diziam que a minha hérnia se escondia. Felizmente um grande amigo, o Manuel Pinto Coelho, médico, disse para não aceitar mais operações que qualquer dia não conseguia tolerar a anestesia. Ele ajudou-me a procurar alternativas e encontrou o Andrew Hatch, um quiropata americano, a viver no Estoril, que por sua vez me recomendou Antolin Silva, também quiropata, mas na Maia, já que eu estava lá em cima. Foi ele que me tratou. Senão ainda hoje estava a ser operado ou numa cama. Hoje em dia, vou a um quiropata francês, no Príncipe Real, quando estou mais tenso ou cansado. E continuo a ter dias em que me custa a mexer, claro. Ainda agora voltei a ser operado, mas a um problema gravíssimo nas varizes. Em vez de demorar a hora esperada, demorou seis. Temos de saber relativizar. E seguir em frente. Qual é a alternativa? Cortar os pulsos? Desistir? Não. A alternativa é respirar fundo e olhar em volta. Há sempre gente pior do que nós. E muitas vezes essas pessoas nem se queixam. Ou nem têm com quem se queixar. Isso é que é o pior.

raquel.carrilho@sol.pt