E não acredito que nenhum deles tenha uma folha limpa nesse aspecto.
É altamente improvável que nunca se tenham atrasado a entregar uma declaração de rendimentos, a liquidar um imposto ou a pagar uma taxa autárquica.
É duvidoso que tenham declarado escrupulosamente tudo o que receberam, por cima ou por baixo da mesa.
Até porque em Portugal houve até há bem pouco tempo uma cultura de laxismo (e mesmo de hostilidade) em relação ao fisco.
Recordemos que a Maria da Fonte começou com um assalto às repartições de Finanças contra o pagamento de impostos.
Esta situação não era exclusiva, aliás, do nosso país, antes se estendia a todos os países do Sul da Europa – Espanha, Itália, Grécia (onde ainda hoje persiste em larguíssima escala).
Só há uns 10, 15 anos essa cultura anti-fisco começou a mudar em Portugal, embora persista ainda de uma forma subterrânea: é a obra que se faz em casa de que não se pede factura, é o andar que se compra ou se vende por um preço diferente do declarado, é a empregada doméstica que não passa recibos, etc.
Lembro-me de que, até há não muitos anos, as pessoas vangloriavam-se das artimanhas que inventavam para fugir aos impostos – e eram vistas pelos outros como pequenos heróis.
Isto seriam impossível nos países nórdicos, onde a cultura é exactamente a oposta da nossa: quem foge ao fisco é olhado como um impostor.
Por esta razão, repito, será difícil encontrar um português que jamais tenha tido uma falha em relação ao fisco, à Segurança Social, ou a outras áreas de relação com o Estado.
E assim sendo, temos uma imagem do que poderá acontecer se os processos de muitos responsáveis políticos começarem a ser vasculhados por funcionários e militantes com espírito pidesco, tornando-se o centro da próxima campanha eleitoral.
Criar-se-ia um ambiente irrespirável.
As faltas poderiam não ter importância nenhuma – mas repetidas dia a dia pelos media, agitadas em debates, comentadas por comentadores, sopradas pelos estados-maiores dos partidos, acabariam por ter uma importância desmedida, assumindo perante o cidadão comum laivos de crimes terríveis.
Espero que não se vá por aí.
Mas foi esta caixa de Pandora que a oposição abriu, na tentativa de se aproveitar politicamente do caso que envolveu Passos Coelho.
Quanto a Passos Coelho, a situação é muito simples: ele é um dos 10 milhões de portugueses que não tem uma relação sem falhas com a administração pública.
Por isso escrevi na semana passada que me sentia inibido de falar sobre o assunto (ao contrário da maior parte dos políticos, jornalistas e comentadores que têm falado dele com o maior à-vontade).
É que eu – e provavelmente eles – sou um dos que têm falhas nesse aspecto.
Dir-se-á que o caso é diferente, pois não sou primeiro-ministro.
Mas as falhas de Passos Coelho também correspondem ao tempo em que era um cidadão comum.
Se fossem cometidos já como primeiro-ministro, aí a pena teria de ser duríssima: se Passos Coelho fosse apanhado a fugir ao fisco quando pede sacrifícios aos portugueses, teria de se demitir de imediato, mesmo que a falta fosse de pouca importância.
Só que os tempos são outros.
Entre esses tempos e os actuais medeiam entre 10 a 15 anos – e uma falta não deve perseguir um cidadão pela vida fora.
Mau seria!
É o mesmo que dizer que Bush, Clinton ou Obama não poderiam ser presidentes dos EUA por terem consumido drogas na juventude.
Não é isso que os torna drogados – como não é um problema antigo com o fisco que torna alguém incumpridor e impossibilitado de exercer funções públicas.
Acabo como comecei: oxalá não venhamos a ter uma campanha suja.
Porque ninguém escaparia.
Atrevo-me mesmo a dizer que as faltas de Passos Coelho até agora detectadas serão insignificantes ao lado das de outros responsáveis políticos.
A seguirmos por este caminho, a classe política ficaria mergulhada na lama.
Tal como aconteceu com o escândalo Wikileaks, que só serviu o voyeurismo mais torpe.