“Com a tomada de medidas que diminuíram o rendimento das famílias e aumentaram o nível de pobreza, houve uma campanha fácil para se exigir do lado do Estado maior transparência na sua actuação” – diz Rui Teixeira dos Santos, professor do Instituto Superior de Gestão e autor de diversos estudos sobre o tema, considerando que a crise levou “o Parlamento a aprovar leis que definem o combate à corrupção como uma prioridade criminal”.
Com a descoberta recente de, pelo menos, três redes no coração da Administração Pública – nas áreas da Administração Interna, da Justiça e da Segurança Social – a opinião pública ficou mais alerta e exigente, dizem os especialistas. “A alta corrupção tornou-se actualmente num tema central das campanhas eleitorais”, sublinha Carlos Pimenta, do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.
“Há uma situação de alarme social do cidadão face à corrupção”, concorda João Paulo Batalha, director-executivo da organização Transparência e Integridade, Associação Cívica. “Por alguma razão nas últimas semanas o Parlamento foi inundado de propostas contra a corrupção que estavam a marinar e que os partidos repescaram”, refere Batalha, acrescentado: “A própria Justiça está a ser mais pressionada a agir por força da opinião pública”.
Procuradora promete combate
António Cluny, procurador-geral adjunto representante de Portugal no Eurojust, organismo europeu para a cooperação judiciária, também não tem dúvidas de que há “uma sensibilidade muito maior em relação ao crime de corrupção, a nível nacional e europeu”. E concorda que “foi a crise económico-financeira que agudizou essa sensibilidade, levando as pessoas e as instituições a estarem mais atentas”.
Aliás, a procuradora-geral da República (PGR), Joana Marques Vidal, anunciou, há um semana, a criação de um grupo de trabalho para delinear uma estratégia de combate à corrupção, que definiu como uma aposta do seu mandado. Isto depois de ter reconhecido a gravidade do problema: há “uma rede que utiliza o aparelho do Estado e outro tipo de aparelhos da Administração Pública para realizar actos ilícitos”, muitos envolvendo “corrupção”.
De acordo com os peritos, o desmantelamento destas redes que operavam na Administração Pública mudou a percepção da opinião pública sobre a corrupção no país. “O fenómeno era até agora sobretudo visto em situações menores, como nas autarquias e juntas de freguesia”, diz Carlos Pimenta. E Rui Teixeira dos Santos recorda que, numa sondagem que fez em 2008, para o seu estudo sobre a corrupção em Portugal, os portugueses não mencionavam sequer os altos dirigentes como protagonistas de esquemas de 'luvas': “Achavam que a maioria dos casos ocorria nos centros de saúde e hospitais e nas autoridades tributárias”.
A aposta no combate a este fenómeno e o consequente aumento de meios nas polícias e no Ministério Público é também apontado como uma das explicações para a detecção de tantos casos nos últimos tempos. “Importa reconhecer que, entre nós, as magistraturas e os órgãos de polícia criminal estão agora melhor apetrechados: mais especialização, mais dotações logísticas e um maior sentido de proactividade”, afirma ao SOL Cunha Rodrigues, antigo PGR, acrescentando verificar, “com surpresa e aplauso, que se tornou possível mobilizar dezenas ou mesmo centenas de agentes de órgãos de polícia e da fiscalização tributária para uma só operação”.
“Há 15 ou 20 anos, a requisição de dois ou três inspectores de polícia reclamava demoradas e tortuosas negociações entre representantes das magistraturas e membros do Governo”, recorda.
Para o antigo procurador-geral da República, “o fenómeno da corrupção teve tradicionalmente, em Portugal, um significado larvar e cultural” que mudou com a “entrada dos fundos comunitários”, na medida em que os “riscos passaram rapidamente a irradiar para sectores sensíveis da Administração”.
Cunha Rodrigues considera, por isso, que “o Estado reagiu tarde e com excesso de prudência”. Isto porque, “por um lado, o sistema penal não estava calibrado para este tipo de criminalidade” e, “por outro, porque, no interior do poder, havia quem não estivesse interessado em dotar a Justiça dos instrumentos necessários e, pior ainda, quem temesse e se limitasse a induzir factores de suspeição sobre a Justiça”.
'Luvas' de 50 milhões nos vistos gold
Para o fundador do Movimento Anti-corrupção, criado em 2010 por vários cidadãos, é certo que houve um aumento da eficácia das autoridades judiciais. “Há mais e melhor investigação”, acredita Micael Sousa, recordando que quando o movimento foi lançado com o objectivo de chamar a atenção para a necessidade de mudar a cultura portuguesa, os seus responsáveis chegaram a fazer uma proposta ao Conselho de Prevenção da Corrupção, liderado por Guilherme de Oliveira Martins, para tornar o tema obrigatório nas escolas, nas aulas de educação cívica, ideia que acabou por não avançar.
Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e presidente da organização Transparência e Integridade, Associação Cívica, defende que um dos problemas é exactamente a falta de prevenção. E garante que apesar dos serviços do Estado terem hoje quase todos planos anti-corrupção, eles não funcionam por serem desfasados da realidade. “O plano de prevenção de riscos do SEF não previa os riscos ligados à atribuição dos vistos gold”, exemplifica.
E neste caso as 'luvas' da corrupção poderão atingir os 50 milhões de euros, estima Rui Teixeira dos Santos, autor do trabalho 'Economia Política da Corrupção', que pela primeira vez, em 2008, monitorizou o impacto deste crime em Portugal. “Mantendo os pressupostos do estudo de 2008 relativamente à incidência da corrupção sobre o volume de investimento público, no caso da prestação de serviços dos vistos gold, o que me parece razoável, estimo que as 'luvas' envolvidas neste processo rondaram os 50 milhões de euros”, adiantou o especialista, referindo-se ao cálculo apurado, e baseado em sondagens, de que 5% do volume total do investimento público é desviado para 'luvas'. Terá sido essa, acredita, a percentagem desviada do investimento de mais de mil milhões de euros trazido pelos vistos gold – medida do Governo para atrair investimento estrangeiro.
Luís de Sousa sublinha que este e outros esquemas resultam em parte dos “fracos mecanismos de prestação de contas” dentro das instituições do Estado. E deixa um alerta: “Vamos continuar a descobrir mais casos de corrupção na Administração Pública”. O especialista prevê mesmo que o risco de corrupção vai aumentar com as novas regras propostas pelo Governo, que alargam a atribuição de vistos gold a quem invista em fundações públicas ou privadas, associações culturais e entidades associativas municipais. Num estudo que o organismo que lidera está a concluir – e que pretende tornar público em breve – já foram detectados graves problemas. “O investimento nestas instituições pode mascarar financiamentos eleitorais ilegais e estimular o tráfico de influências para a obtenção de investimento em determiandos municípios ou instituições”, garante por sua vez o director-executivo da associação, João Paulo Batalha.