Os especialistas em Direito da Família acusam ainda os deputados de criarem estas leis para contornar o chumbo da co-adopção por casais homossexuais – que ficariam assim com direitos alargados – e de, com isso, criarem problemas às milhares de crianças cujos pais lutam na Justiça.
“Vem alterar profundamente o equilíbrio social que há na lei e é uma subversão total do interesse da criança, pois pais e padrastos passam a disputar, em igualdade de circunstâncias, as responsabilidades parentais. É absolutamente irresponsável”, diz Joaquim Manuel Silva, juiz do Tribunal de Sintra.
O que pode acontecer em caso de divórcio
Assim, se um pai exercer sozinho as responsabilidades parentais do filho (porque a mãe morreu ou está impedida) e decidir estendê-las à sua nova mulher, esta madrasta passa a poder tomar decisões importantes na vida da criança – como mudá-la de escola ou decidir uma cirurgia. Se o casal se separar, vai ter de regular as responsabilidades parentais da criança, mesmo sendo esta filha de um e enteada de outro. Em teoria, o tribunal pode decidir que o menor fica a viver com a madrasta e o pai paga uma pensão de alimentos e vê-o ao fim-de-semana.
Joaquim Silva aprecia anualmente mais de 400 processos relativos a responsabilidades parentais – alterações ou incumprimentos – e garante que em 90% dos casos os pais estão em conflito. O juiz estima, por isso, que ao permitir que estas responsabilidades sejam disputadas também pelos padrastos, o problema se agrave.
O procurador da República Rui Amorim antevê os mesmos problemas: “A 'disputa' pela criança vai deixar de ser uma questão da consanguinidade e transpor-se para o plano dos afectos, com toda a turbulência que daí advirá. Já hoje os progenitores digladiam-se nos tribunais em guerras intermináveis. Imagine-se o que significará uma disputa entre um progenitor e o cônjuge do outro!”. Só em 2013 houve 38 mil processos nos tribunais relativos a estes assuntos.
Rui Amorim reconhece que “a estrutura familiar passou a ser vista como uma comunidade de afectos e tem cada vez menos a ver com casamento e laços de sangue e cada vez mais com relações emocionais. No entanto, sempre terá de subsistir um 'patamar mínimo' sem o qual não podemos continuar a falar de 'direito da família'“.
A juíza Maria Perquilhas, do Centro de Estudos Judiciários, considera as propostas “juridicamente erradas”. “As responsabilidades parentais cabem aos pais, não são transmissíveis”, diz, explicando que a filiação biológica só pode ser quebrada na adopção.
A juíza considera estas leis “manobras políticas que demonstram falta de coragem para resolver a co-adopção”.
Actualmente o Código Civil prevê que, “quando um dos pais não puder exercer as responsabilidades parentais (…) caberá esse exercício unicamente ao outro progenitor”. Se este estiver também impedido, deverá ser a família de um deles a assumir esse papel (avós ou tios), desde que haja um acordo prévio com validação legal. Os projectos de lei em causa alargam essa possibilidade aos cônjuges ou unidos de facto, e no caso do PSD/CDS, essa validação legal deixa até de constar da lei.
Outra situação já prevista pela lei é o exercício exclusivo destas funções por apenas um progenitor. É nestes casos que os partidos querem estender as responsabilidades ao cônjuge ou unido de facto, desde que este “já acompanhe no plano dos factos, o crescimento e desenvolvimento do menor” (diz a exposição de motivos do PSD/CDS), ou seja uma “figura de referência para o menor, com quem aliás, já co-habita e desenvolveu profundos laços de afectividade” (diz o PS).
Gays passam a ter poderes sobre filhos do cônjuge
Nas situações de perigo, a lei actual já prevê que os pais sejam inibidos das responsabilidades e que a criança seja confiada a outros, quase sempre aos avós. Embora, teoricamente, a decisão judicial possa atribuí-la a um padrasto.
O advogado Rui Alves Pereira reconhece a importância dos afectos na estabilidade emocional das crianças, mas diz não compreender a necessidade desta lei. “Os padrastos já praticam actos da vida corrente pois estes são delegáveis pelo progenitor. Como levar à escola ou ao médico”.
São muitas as reservas levantadas pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Ordem dos Advogados (OA) que deram parecer ao projecto do PS. Principalmente quando as responsabilidades são estendidas ao cônjuge e o casal se separa. “Terá o progenitor sobrevivo e não impedido que persistir na cedência/partilha de responsabilidades parentais relativas ao menor com o ex-companheiro? E se essa vontade não se mantiver? E se o progenitor decidir casar/unir-se de facto com outra pessoa (…) poderão estes igualmente requer a atribuição conjunta? Quantos pais/mães poderá ter uma criança?”, questiona a OA.
Por seu lado, o CSM critica a “incongruência” da proposta, que alarga os direitos aos homossexuais, mas não os consagra totalmente nem nunca se refere a eles directamente. Ou seja, um casal gay não pode adoptar, mas se um deles adoptar sozinho (ou recorrer à inseminação artificial no caso das mulheres para ter um filho), as responsabilidades parentais podem ser exercidas em conjunto. “Não pode adoptar, mas pode exercer as responsabilidades parentais!”, diz o parecer.
A PGR alerta também para o risco de esta proposta “conduzir a sucessivos regimes de regulação do exercício das responsabilidades parentais”.