Kalaf: ‘A maior parte das vezes sinto-me o gajo com menos talento da sala’

Kalaf Epalanga cresceu em Benguela longe do reboliço de Luanda e só se apaixonou por uma metrópole quando veio para Lisboa, aos 17 anos. Em Portugal descobriu que queria ser poeta, mas a música intrometeu-se no percurso literário com o sucesso dos Buraka Som Sistema. Em Maio protagoniza o espectáculo Carta Branca, no CCB, onde…

 

O seu último livro intitula-se O Angolano que Comprou Lisboa. A ironia faz parte da sua personalidade?

Não sou um irónico ácido. Gosto do riso e não consigo não me entregar à ironia feliz, desconstruir um enigma ou um problema com uma gargalhada. Acho isso muito humano e é o que procuro: o lado humano das relações, sejam elas comerciais ou sociopolíticas. Como é que a pessoa se apresenta, o que isso realmente afecta? Por exemplo, o facto de ser músico faz com que se pinte um boneco à volta da minha pessoa. A primeira coisa que faço é desconstruir essa imagem e ando, muitas vezes, de fato e gravata, o mesmo uniforme que os empresários usam. Gosto muito de trabalhar sobre a percepção.

Mas como nasce este título e este livro?

Acompanha o evoluir das relações Angola-Portugal e o facto de Angola, durante muito tempo, ter estado nas notícias. Começou a surgir a vontade de escrever sobre isso. E depois, porque gosto de estar em diálogo com os meus contemporâneos. Quando o Nástio [Mosquito] lançou o disco dele, Se eu Fosse Angolano, decidi reflectir sobre um outro angolano.

Esta geração de angolanos, a que pertence, tem reflectido sucessivamente sobre o que é ser angolano hoje em dia.

Sim, artistas como o Kiluanji Kia Henda, o Yonamine, o Nástio, o Binelde… Cada um no seu poleiro, mas ainda assim a comunicarmos uns com os outros e atentos ao que o outro está a fazer. Somos todos amigos. Daqui a 20 anos, se olharmos para este período, vai ser interessante ver que existiram artistas que reflectiram e dialogaram sobre o que é ser angolano. Um dos propósitos da arte é esse.

Disse que são amigos. Mas é uma relação de irem beber um café, sentarem-se à mesa e dizerem: 'Vamos falar sobre Angola'?

[risos] Não. É estar atento ao que o outro faz. E depois é como qualquer outro amigo: conversa-se. Vivemos todos em países diferentes e encontramo-nos em vários sítios do mundo. E quando se encontram dois angolanos o tema Angola vem sempre à baila.

Nessa reflexão, como caracterizam a Angola de hoje?

Angola é provavelmente o país mais interessante, pelo menos no quadro do mundo que fala português. É o país com mais avanços num curto espaço de tempo e, neste momento, é um quadro em aberto. Nós queremos engajar-nos em participar. Há poucos países que conseguem oferecer isso. No Ocidente as coisas já estão solidificadas, em Angola ainda está muito em aberto, veja-se o exemplo da novela Jikulumessu. Pela primeira vez o assunto LGBT entrou no discurso do angolano comum. Obviamente há vários sectores na sociedade que já se confrontaram com isso, existe a Titika, de quem sou um admirador. Mas acho muito interessante debater isto porque é um facto: há gays em Angola. E a arte não tem de ser unânime. As obras dos meus amigos não são unânimes. Não concordo com tudo o que fazem,  mas isso não anula o facto de achar que aquela obra deve existir. Eu próprio, quando encontrar a unanimidade, reformo-me.

Escreve todos os dias?

Não tanto quanto gostaria, mas escrever todos os dias coloca-me mais perto do meu sonho: ser um grande escritor. É um exercício para chegar a essa meta.

Mas já vem aí outro livro?

Estou dividido entre o romance e o livro de contos. São histórias diferentes, mas ambos os livros estão praticamente escritos. O de contos aborda a emigração, que acho um assunto interessante.

Nasceu no início de Fevereiro, mas nunca diz o dia. Porquê?

Para não receber telefonemas. Dispenso essa coisa de estar o dia inteiro a receber parabéns.

Que recordações guarda de Benguela, onde nasceu?

Tive uma infância muito rica em termos de experiências. Sou o segundo de quatro irmãos: dois rapazes e duas raparigas. O meu irmão é pintor e ser confrontado com essa coisa da arte desde muito novo fez-me pensar sobre muita coisa. Em primeiro lugar, qual é o meu talento.

Os seus pais eram muito presentes?

Tínhamos uma certa liberdade. Cresci mais perto da família da minha mãe e o meu avô foi muito marcante. Tanto que assino com o seu nome. Ele estava registado como Faustino Alfredo, mas o apelido era Epalanga. Só que no registo – aí está uma coisa estranha da colonização – os nomes eram ocidentalizados e ele ficou Faustino Alfredo.

Porque o marcou assim tanto?

O meu avô era político e muito sui generis. Era muito correcto, mas de uma forma absurda. Na família pediam-lhe mais jogo de cintura, o 'esquema', uma ciência que, para seres angolano, tens de dominar, e faltava-lhe isso. Achava desconcertante ver alguém tão correcto. Outra coisa que achava fascinante nele era ter estudado teologia, mas nunca pisar uma igreja e ter-se tornado comunista. Adorava a ideia de alguém conhecer tão bem uma coisa ao ponto de dizer: 'Não preciso mais disto'.

A igreja tornou-se um tabu em casa?

Não, porque depois tinha uma avó totalmente devota. Beata de primeira linha, ia à igreja de manhã e à tarde. Mas isso ainda me fazia admirar mais o meu avô. A minha avó era tão religiosa, mas tinha de ir à igreja duas vezes ao dia. Já o meu avô era tão correcto, e não metia lá os pés. Achava que ele tinha uma luz divina sob a cabeça. As minhas primeiras memórias que tenho são essas: arte e religião.

E não se discutia política lá em casa?

Não, pelo contrário. O meu avô sempre promoveu o distanciamento da política.

Mas tinha noção das convulsões que o país vivia?

O angolano tem uma consciência política grande porque o país esteve muitos anos em guerra. Começava logo na escola, quando nos diziam para nunca apanhar canetas na rua porque podiam ser bombas.

Isso muda uma criança?

Era a nossa realidade. Em miúdo aceitam-se as coisas como elas são, não se questiona muito. Vivíamos normalmente com a consciência de que podíamos ser chamados para a guerra a qualquer momento. Tenho primos que foram. Mas ninguém está preparado para ir para a guerra.

Na adolescência a guerra continuou a ser encarada com essa 'normalidade'?

Havia a consciência de que tudo podia ter um fim trágico, mas não se pensava nisso. É como viver na Faixa de Gaza. Pode falar-se sobre o assunto, mas no dia-a-dia procura-se um sentido de normalidade. A vida tem de continuar. Há pessoas a nascer ali, logo ainda há esperança de que as coisas vão melhorar. Mas claro que crescer sob essa nuvem da guerra influencia. As pessoas agarram-se à vida, aos momentos de alegria, com outra ferocidade e urgência. Nas primeiras vezes que vim a Portugal senti isso em comparação com os outros rapazes. Tinha sucesso com as raparigas só porque tinha audácia. Enquanto os portugueses ficavam num canto, eu ia lá e dizia o que tinha a dizer.

Por que veio para Portugal em definitivo?

Vim com o meu irmão porque em Portugal teríamos mais possibilidades, mas levei tempo até me 'cair a ficha'. Pensava que ia ficar quatro anos e depois voltava para Angola, nem desfiz a mala. O que fazia era comprar discos e livros. Estava a comprar aquilo que não havia em Angola.

Em que momento desfez a mala?

Quando decidi que ia ser poeta. Não podemos negar, Portugal é um país de poetas e em Lisboa senti o quão inspiradora uma cidade pode ser. Nunca prestei muita atenção a cidades, nem gostava particularmente de Luanda quando vivia em Angola, mas Lisboa teve esse impacto porque encontrei pessoas muito diferentes de mim, mas nas quais me revia. Aqui consegui, por exemplo, falar com pessoas da UNITA. Aqui foi possível desprender-me de tudo o que tinha marcado a minha vida, como crescer numa casa com um político do MPLA, ouvir o que o outro tem a dizer e sentir que, afinal, ele é tão apaixonado por Angola como eu.

Como chegou à música?

Entro na música porque, na altura, existia uma coisa maravilhosa chamada rap. O rap fez-me olhar para a minha condição: estrangeiro e negro. Senti que havia uma geração a reflectir sobre coisas muito interessantes e, aí, veio ao de cima a minha bagagem: tudo o que andei a fazer, os livros que andei a ler, as músicas que andei a ouvir… Tudo aquilo começou a fazer sentido e comecei a perceber que podia contribuir com alguma coisa. Tentei ser rapper, mas falhei redondamente. Não tenho talento nenhum para ser rapper.

O que lhe falta?

Falta-me ritmo, falta-me tudo aquilo que o rap precisa para existir. Posso ter o look, mas não tenho o conteúdo. Por isso decidi que ia ser poeta. Mas quando és jovem queres estar onde os teus amigos estão e os meus estavam com a música. Por isso decidi que ia escrever letras para canções. Aí começou a minha busca. Graças a Deus tive a abertura para ir procurar pessoas que fizessem rock, pois achava que, para fazer canções, tinha de ser a partir de uma guitarra. Costumava comprar sempre os meus jornais num quiosque em Almada, onde vivia na altura, e o dono do quiosque dizia-me que o filho adorava os mesmos jornais que eu e que tocava guitarra. No dia em que decidi escrever canções, pedi-lhe para me apresentar o filho. Fizemos uma banda e aí começou a minha viagem.

Como se chamava a banda?

Não vou dizer… Tenho vergonha dos nomes da altura [risos]. Certo é que a minha educação musical foi dada por músicos de rock. Conseguimos chamar um baixista mais velho, com uma visão mais adulta e muito mais talentoso do que nós. Esta experiência mudou-me profundamente. Mas percebi que também não ia ser rocker, que queria procurar algo mais experimental, mais avant-garde, e entretanto a banda acabou. Só que antes disso, numa das sessões de estúdio onde gravámos a maqueta, estava a explicar à vocalista como ela tinha que enquadrar o verso x na canção  e, do outro lado do aquário, estava um indivíduo que me ouviu e achou que o meu timbre seria perfeito para umas coisas que estava a fazer, na área da electrónica, próximo dos Portishead e do Tricky. E assim se deu a minha entrada no universo da electrónica. Sempre fui uma pessoa muito curiosa, mas também precisava de ser porque não tinha talento nenhum. Precisava de correr mais do que os outros.

Ao longo da vida, sentiu-se muitas vezes como essa pessoa que não tinha talento?

Absolutamente. A maior parte das vezes sinto-me o gajo com menos talento da sala. Logo tenho de trabalhar a dobrar.

Para combater esse sentimento, nunca quis aprender a tocar um instrumento?

O que queria era escrever livros. A música era só um caminho para lá chegar, um caminho que adoro e no qual quero estar sempre envolvido. Mas sei o meu lugar. Sei qual é o meu contributo. Trabalho com música, mas não me vejo como músico.

Como correu essa primeira incursão na electrónica?

Gravámos umas maquetas, mas pensávamos as coisas de maneira diferente e a coisa não continuou… Nessa altura também percebi que Almada era muito pequena e que tinha de me mudar para Lisboa. Foram tempos em que frequentava muito a megastore Virgin. Aliás, foi na secção de vinil da Virgin que encontrei alguns dos meus heróis. Era muito fã dos Cool Hipnoise, da geração Rapública toda, e os Family todos trabalhavam ali. Passava as tardes na Virgin a falar de música e pela primeira vez havia pessoas da minha idade que ouviam as mesmas coisas que eu. Nesta altura, um dos rapazes da Virgin estava à procura de um roomate e mudei-me para casa dele. Nunca mais saí da Baixa de Lisboa.

Com essa mudança para o centro de Lisboa começou a cruzar-se com muitas figuras que, na altura, marcavam a cena musical portuguesa?

Sim. Foi nessa altura que, um dia, no metro, me esbarro com o Johnny, essa figura mítica do Bairro Alto, DJ com uma colecção de discos incrível. Ele tinha tudo o que andava a estudar, cinco mil discos. Depois o Johnny começou a apresentar-me a algumas figuras, algo que lhe estou grato para sempre. Apresentou-me ao Tó Ricciardi, que na altura tinha uma editora com o Pedro Passos e o André Roquete, a Nylon, onde havia uma comunidade bastante interessante de músicos.

Foi o Johnny que o apresentou ao Zé da Guiné, uma figura incontornável de Lisboa?

Não. Ele era um amante de jazz e também tinha uma colecção de vinil maravilhosa. Eu comprava alguns discos na Discolecção, uma loja no Centro Comercial Palladium, nos Restauradores, onde se reuniam os gajos que coleccionavam discos. Nunca coleccionei, mas ia lá à procura de música angolana, bossa nova, jazz… Foi aí que encontrei o Zé da Guiné. Encontrávamo-nos ali e ficávamos horas a conversar. Sendo amante de Lisboa estava a ter umas lições de história da cidade, dadas pelo gajo que estava na linha da frente. Todo ele era muito mais estiloso do que eu e tinha aquele nome… Zé da Guiné. É o meu herói.

Não veio para Lisboa para ser artista. Como é que um pai médico viu as suas mudanças de percurso?

Fiz-me homem. Nunca lhe fui bater à porta a pedir dinheiro. São escolhas. Tenho um irmão pintor, dois anos mais velho, e cresci com esta figura que pintava maravilhosamente bem. Muito cedo ouvi pessoas dizerem 'uau', ao que ele pintava. Em casa nunca tivemos brinquedos bélicos, como pistolas. O que tínhamos em abundância era lápis e papel. Desde muito cedo, ouvi dizerem ao meu irmão: 'Vais ser um grande artista'. E durante a adolescência soube que era possível fazer dinheiro com a arte. Como tinha uma lábia do caraças, pegava nos desenhos do meu irmão, ia ao mercado, vendia-os e depois dividíamos o dinheiro.

Mas sem a ajuda financeira dos seus pais, naquela altura vivia do quê?

Também me pergunto! [risos] Ia ao Bicaense com o Johnny e ficava vários dias da semana a recitar Fernando Pessoa e ele a passar discos. Quando decidi que era um músico profissional, não trabalhava de graça. Podiam pagar pouco, mas não tocava de graça. Além disto, fazia biscates. Trabalhei uma temporada na Telepizza. Ah, e tive uma experiência brilhante num restaurante japonês, onde conheci uma pessoa incrível, o Calunga Lima, um intelectual, cineasta, escritor, professor. Foi provavelmente a pessoa que mais me ensinou a ser aquilo que sou hoje. Dava os conselhos mais acertados, do tipo: 'Queres escrever? Lê cinco livros por semana', 'Queres ser artista? Não tenhas filhos. Se tiveres filhos tens de ser responsável, não vais poder ter esta vida'.

E o que fez com esses conselhos?

Deixei os biscates, a escola e foquei-me só a fazer o que faço hoje. Com ele comecei a questionar: O que é a felicidade? É ser rico ou ser realizado? Quero chegar ao topo ou quero manter isto em linha contínua? E fui sentindo cada vez mais necessidade de comunicar, de fazer coisas diferentes, daí os vários projectos que fui tendo, com Bullet, Space Boys, Kika… Entretanto a Nylon fechou e fui bater à porta das grandes editoras, que me diziam: 'As tuas coisas não vendem'. Decidi que ia provar o contrário.

E assim nasce a editora Enchufada?

Sim. Já conhecia o João [Barbosa aka Branko] e o Rui [Pité aka DJ Riot], porque eles foram escalados para produzir o meu disco a solo, só que o disco depois não foi aprovado pela editora. Mas senti no João a mesma sede, a mesma vontade de ir em frente, uma saudade do futuro. Nesta altura ele foi viver para Madrid e eu ia visitá-lo. Depois de muita conversa decidimos criar a Enchufada. Anos depois, surgiram os Buraka Som Sistema.

Ainda antes do nascimento dos Buraka Som Sistema, a verdade é que já havia símbolos da música angolana em Portugal…

Os arquitectos da kizomba – Eduardo Paim, Paulo Flores, etc. -, a dada altura viveram em Lisboa, logo, acho que Lisboa foi fulcral para o desenvolvimento do estilo e que até pode reclamar a sua paternidade. A Vidisco, uma editora portuguesa, foi provavelmente a que editou mais kizomba na história deste estilo. Por isto mesmo acho que deveria existir um museu da kizomba em Luanda, mas em Lisboa também.

Vai destacar isso mesmo no espectáculo Carta Branca, que protagoniza em Maio no Centro Cultural de Lisboa, onde revisita a obra de Bonga?

Bonga é um dos grandes nomes da música angolana. Uma fonte de inspiração. Os álbuns Angola 72 e 74 são para mim dois grandes exemplos de excelência e genialidade na música contemporânea africana. O semba servirá de suporte para uma viagem pela música que me serve de banda sonora. O semba é vida e quero reflectir isso neste espectáculo. Vou ter vários convidados, mas para não estragar a surpresa não posso revelar já os nomes.

Apesar de serem artistas conhecidos em Portugal, há uns anos, o Bonga e o Paulo Flores, dificilmente esgotavam uma grande sala em Portugal, como acontece hoje com os Buraka. Em que momento é que estes ritmos africanos deixaram de ser uma coisa de nicho e se tornaram um fenómeno de massas?

Há vários factores. Quando cheguei a Portugal havia um fenómeno que eram as barracas. No final dos anos 90, começaram a construir os bairros sociais, como na Buraca, e foram parar a estes bairros toda a gente pobre: brancos, ciganos, negros de todos os PALOP. Foi quando isto se deu que começou realmente a grande miscigenação cultural. Entretanto, esta bolha dos bairros sociais passou para outro fenómeno muito interessante: os centros comerciais, para onde foram trabalhar muitas pessoas dos bairros sociais. De repente, por exemplo, na zona da restauração do Colombo, numa loja de sandes, há um jovem branco e outro negro, que estão ali, juntos, a fazer sandes durante oito horas. Têm um PA e cada um traz a sua playlist. O branco põe Metallica, Britney Spears, Primitive Reason ou Xutos. O negro põe Eduardo Paim, Paulo Flores, C4 Pedro, Nélson Freitas. Durante oito horas, todos os dias. De repente, aquela coisa começa a fazer algum sentido. Quando chega o fim-de-semana, um dia, o jovem branco convida o jovem negro para ir ao Bairro Alto. E, no outro fim-de-semana, o jovem negro diz: 'Vamos agora para o meu canto'. A meu ver, esta junção permitiu que a música africana ganhasse mais destaque, até porque as novas gerações já não têm os mesmos preconceitos.

E essa é a ideia base de Buraka…

Aproveitámos uma realidade: as pessoas ouvem as mesmas músicas. Buraka tem muito disto. Por exemplo: não tenho Metallica na minha playlist, mas adoro o Black Album. O João e o Rui eram amantes de grunge, de Pearl Jam e Nirvana, mas começaram a consumir dance music, r&b… Eu trago a minha bagagem, eles trazem a deles e depois há pontos em comum. E a dance music é um bom ponto de contacto. Dentro da dance music há aquela que é cerebral e esquizofrénica, via Berlim, como Kraftwerk; há a dance music via a comunidade jamaicana de Londres, com o drum&bass; e há Detroit no meio, com o house e a afro-americana. Na dance music há a verdadeira democracia cultural. Toda a gente tem algo para dar, algo para acrescentar.

No caso de Lisboa acrescentou-se a kizomba.

Exacto. No nosso canto, observando o que acontecia, por exemplo, em Londres, com o dubstep jamaicano, começámos a pensar: o que temos de parecido em Lisboa? E era a kizomba, o kuduro… Foi isso que sentimos que seria o factor diferenciador: 'Tomem aqui algo de origem angolana, que não conhecem, e que acontece em Lisboa'.

Essa mistura foi logo aceite ou olhavam-vos de lado?

Foi preciso uma evolução. O drum&bass foi o ponto de viragem. Eu e o Andro [aka Conductor], por estarmos muito envolvidos, não conseguimos identificar o factor que tornaria o kuduro universal. O João e o Rui tiveram essa coragem. Se pegarmos no kuduro, sem filtro nenhum, e o dermos a ouvir a uma pessoa comum, não consegue ouvir. A música de dança, no geral, é sustentada pelos graves, pelo baixo. As linhas de baixo são o elemento sexy da música, é o que faz dois corpos atraírem-se. É engraçado, as mulheres são mais sensíveis a isso do que os homens. As canções que não têm isso, geralmente, não conseguem atrair o público feminino. Não há como discutir, é ciência musical. E o kuduro tem uma ausência de baixo terrível, daí ser uma coisa bastante masculina. A partir do momento em que começa a entrar baixo no kuduro, a coisa muda de figura. Em 2006, quando os Buraka arrancaram e começámos a pôr kuduro nas nossas festas no Club Mercado, em Lisboa, a primeira coisa que fizemos naquelas canções foi pôr linhas de baixo. De repente, existia um elemento que era reconhecível e que mexia com as pessoas.

Perceberam que tinham de facilitar a audição do kuduro?

Sim, ao público convencional. Não só ao público branco, muitos negros também não entendiam. Um ouvido normal reconhece grupos de 8-16 ou 8-4-8 compassos, e isso o kuduro cru não tem. Seria agoniante uma festa com quatro horas de kuduro, dás um tiro nos cornos! Mas nas nossas noites no Lux, temos quatro horas daquilo. Foi preciso pensar como tornar quatro horas de kuduro audíveis.

A fórmula que encontraram revelou-se um enorme sucesso, com os Buraka a catapultarem-se, tal como o título do primeiro álbum indicava, From Buraka to the World. Actualmente, com concertos nos quatro cantos do mundo, diria que os Buraka são uma grande máquina de fazer dinheiro?

Não diria isso. Sim, somos um dos cachets mais altos em Portugal, mas também somos uma das bandas que mais gasta para ter o espectáculo e os discos que queremos. Os nossos álbuns demoram tempo e quando fazes discos não podes estar na estrada, sendo que a única forma de ganhar dinheiro é na estrada. O que fazemos é: acumula-acumula-acumula para depois reinvestir. O que ganhamos, gastamos. Mas em vez de comprarmos Bentley ou apartamentos com vista para o mar, voltamos a investir na música.

Os seus investimentos pessoais são de guarda-roupa? É internacionalmente considerado um ícone de estilo.

Os 30 são maravilhosos, permitem solidificar o estilo. Hoje posso vestir-me dos pés à cabeça de preto e viver assim até ao resto dos meus dias e não ser estranho. Nos 20 não podemos ter esse luxo. Hoje já consigo reduzir o meu guarda-roupa a dez peças e viver o ano com isso.

De certeza que não tem só dez peças no armário.

Não, porque fui acumulando. Mas hoje visto-me em torno de dez peças e vai ser assim até ao resto dos meus dias. Daqui a três anos faço 40, não há mais nada a dizer em termos de fashion statement. Mas acredito na moda enquanto veículo para comunicar algo. Até a música está a ser comunicada hoje em dia pela roupa. Os Radiohead, por exemplo, são uma máquina de vender t-shirts.

Daí a Rest of the World, marca de roupa que criou com o Branko?

Sim. É uma forma de tentar entender como transitar de um meio para outro, sem perder o engajamento com as pessoas. Tenho a certeza que há jovens que têm t-shirts dos AC/DC, Joy Division ou Pink Floyd e nunca ouviram uma canção deles. Mas se por causa de uma t-shirt forem ouvir, de repente a banda renasce.

Os Buraka Som Sistema, hoje em dia, também são uma forma de estar na vida?

De certa forma. Obviamente que há muita coisa que não é pensada ao pormenor, e é bonito haver coisas orgânicas, mas tentamos atrair pessoas com linguagem e gostos semelhantes. Às vezes oiço, por exemplo, falarem do João Pedro Moreira, que faz muitos dos nossos vídeos e fez o nosso documentário, como 'o vosso realizador'. Ele não é o nosso realizador, mas tem obras tão icónicas na sua carreira associadas a nós que há essa associação automática a uma estética comum. E isso para mim é uma forma de estar na vida.

Esteve 12 anos sem ir a Angola. Porquê?

Tirando as saudades da minha mãe, e ela conseguiu vir algumas vezes a Portugal, não havia razões para ir. O que fiz nesses 12 anos foi conhecer o mundo. E essas experiências fizeram-me abraçar os projectos que abracei.

O que o fez voltar a Angola então?

Já podia pagar aquele bilhete de avião caríssimo. Uma das razões para não voltar mais cedo também foi essa.

O que encontrou, 12 anos depois?

O lugar mais inspirador que alguma vez visitei. Comparava Luanda a Nova Iorque. Estava fascinado. Volto e encontro artistas como Nástio Mosquito, Kiluanji, Yonamine, o rapper MCK. Pessoas a pensar Angola num prisma completamente novo. De repente chego e sou abraçado. Queriam saber o que andei a colher, promover essa troca. Uma das razões que me fez investir todas as fichas nos Buraka, e quase esquecer o meu lado de performer-poeta-cantor, teve a ver com estas pessoas. Encontrei quem fazia o mesmo que eu, mas muito melhor.

Tem passaporte português?

Também. Sou um português recente, faz dois anos agora. Se pudesse tinha tirado antes, mas é preciso ter um tempo suficiente enquanto membro activo da sociedade, ou seja, a pagar impostos. Não sou nacionalista, vejo o passaporte apenas como um documento. Sinto e conheço angolanos que não têm passaporte, mas que me fazem querer ser mais angolano.

Fala-se muitas vezes de racismo em relação às comunidades dos PALOP. Quando se atinge um determinado estatuto artístico essa questão deixa de existir?

Sim, tornas-te um pouco imune. Mas não deixa de estar presente. Claro que é discutível o que vou dizer, mas acho que o racismo é sustentado pela ignorância. E, se analisarmos a sociedade portuguesa, ela não é totalmente iluminada. Ou seja, ainda há muitos aspectos que não se trabalharam. Um exemplo que gosto de analisar são os adeptos de futebol. Admiram os feitos de um atleta negro, mas depois, fora do estádio, a coisa é diferente. Qual é o critério? Gostamos muito de um aspecto, mas depois, se o nosso filho aparecer com uma pessoa de outra raça, a coisa já pesa de maneira diferente.

Mas chegou a sentir o racismo na pele?

Nos EUA, por exemplo. Já fui parado e revistado em plena Los Angeles por estar no sítio errado.

E por ter a 'cor errada'?

Não consigo afirmar isso a cem por cento, mas a cor também é um factor de julgamento. Dessa vez, em Los Angeles, eu e o Andro estávamos com fome às duas da manhã, decidimos sair do hotel e ir a uma hamburgueria do outro lado da rua. Só que decidimos ir pelo Drive In, onde vão os carros, e isso aparentemente não se faz. Quando chegámos à janelinha, o empregado achou que o íamos assaltar. Aceitou o nosso pedido, mas já devia ter tocado na campainha para chamar a Polícia porque ela apareceu segundos depois. Pagámos o nosso hambúrguer, demos o troco a um mendigo que estava ali ao lado – esse, sim, tinha um ar suspeito – e a Polícia chegou e veio directa a nós. Mãos na parede, revistados, tudo a que tínhamos direito. Depois aperceberam-se que não éramos americanos e deixaram-nos em paz. Não pensei na questão racial no momento, mas depois, a reflectir, perguntei-me: 'E se fossem dois indivíduos brancos? Será que aconteceria a mesma coisa?'.

A verdade é que, hoje em dia, é muito frequente ouvirmos dos portugueses que vão para Angola que 'os angolanos são muito racistas'. Tem a ver com a alteração da relação de força entre os dois países?

É por ignorância pura. Sou o primeiro a dizer que a sociedade angolana é muito conservadora, e de uma forma absurda. Passo muito tempo na Alemanha e em Dresden há um movimento que se chama PEGIDA (em português, Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), que tem feito manifestações contra os muçulmanos. Em Dresden, a cidade onde estão a actuar e onde morreu um muçulmano na mesma semana do ataque ao Charlie Hebdo, os muçulmanos representam 1% da população. Eles têm medo de 1% da população! O mesmo acontece em Angola: estamos a falar de 1%, ou menos, de brancos ou mestiços. Isso é assustador. Quando uma sociedade perpetua essa diferenciação e xenofobia contra 1%, significa que é uma sociedade frágil. E geralmente as sociedades conservadoras são frágeis.

Quando se fala de si, quase sempre é 'o Kalaf dos Buraka'. Já pensou como será no dia em que o 'dos Buraka' não existir?

Como tenho um passado, na minha lógica, interessante, e os Buraka vieram muito depois de já ter decidido o que queria fazer, não sinto que isso seja castrador. Embora tenha editado menos livros do que discos, sei os próximos cinco livros que vou escrever e não sei qual vai ser o próximo disco dos Buraka. Essa certeza faz-me relacionar com o sucesso de outra maneira. Claro que seria arrogância da minha parte negar que vou carregar a 'marca' Buraka para sempre, mas o sucesso não é medido pelo número de pessoas que me conhecem. Sucesso, no caso dos Buraka, é acrescentar uma página na história da música e isso já conseguimos.

E esse sucesso, por vezes, é tão grande que se revela castrador?

Sim, principalmente porque o sucesso isola. Gostamos de ser inspirados por outras realidades musicais e, aí, o sucesso é um entrave. Quando vou, por exemplo, para um subúrbio na Tanzânia e digo: 'Vim aqui porque quero ouvir a tua música'. Se for anónimo é fácil, mas se ele for ao YouTube e vir as visualizações que temos é logo: 'Tu queres é roubar o que eu faço'. Aí o sucesso começa a ser impeditivo.

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