Não se pode dizer, por exemplo, que Maddie foi assassinada: para isso, teria de aparecer o corpo da menina.
Ora, no caso da famosa ‘lista VIP’ de contribuintes, o cadáver nunca apareceu.
Nunca apareceu nenhuma lista nem esboço de lista.
Dir-se-á que foi destruída.
Mas, como todos sabemos, nestas coisas há sempre alguém que faz um print, que guarda uma cópia num sítio recôndito, que preserva a ‘prova’ para o que der e vier.
O certo é que a prova não apareceu.
E isso deveria ter levantado suspeitas nas pessoas mais ponderadas.
É verdade que a imprensa apresentou uns nomes que supostamente lá figurariam: Passos Coelho, Cavaco Silva, Manuela Ferreira Leite, Manuel Pinho, José Sócrates, Cristiano Ronaldo…
Mas, lendo as notícias com atenção, percebia-se que se tratava de pessoas que foram objecto de consultas indevidas dos dados fiscais, e não de participantes de uma qualquer lista.
E voltamos à questão inicial: a lista VIP existiu ou não?
E, se existiu, quem lá estava?
Hoje já sabemos a história toda: a famigerada lista nunca existiu, o que existiu foi um projecto nunca concretizado que partiu de uma proposta da área de informátiva.
A questão teve início num encontro técnico entre responsáveis fiscais dos EUA e de Portugal, em que os americanos se mostraram surpreendidos com a vulnerabilidade e falta de segurança do nosso sistema fiscal.
Na sequência desse alerta, os serviços de informática da Autoridade Tributária propuseram o reforço da segurança do sistema – e o subdirector-geral, José Maria Pires, deu luz verde à ideia.
Ter-se-ão, então, iniciado estudos e testes nesse sentido, mas entretanto o caso começou a transpirar e a levantar dúvidas – e o director-geral, Brigas Afonso, deu ordem para suspender o processo.
Julgo que os factos essenciais são estes.
Entretanto, confrontado no Parlamento há 15 dias com uma pergunta sobre a existência de uma lista VIP de contribuintes, Pedro Passos Coelho negou-a peremptoriamente, adiantando que a Autoridade Tributária já a tinha desmentido.
Mas a oposição insistiu no tema, o sindicato também, os media idem, e a ministra das Finanças ordenou um inquérito – instalando-se a ideia de que a lista existia mesmo.
Perante o que pareciam ser as ‘evidências’, Passos Coelho veio lamentar ter sido enganado – ao mesmo tempo que Maria Luís Albuquerque aceitava as demissões do director e do subdirector-geral da Autoridade Tributária.
Ora, aqui, Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque estiveram mal.
Em primeiro lugar, se o Governo tinha aberto um inquérito, era do mais elementar bom senso esperar pelas suas conclusões antes de tomar medidas. Aceitar a demissão de dois altos funcionários a meio do processo foi pôr o carro à frente dos bois.
Em segundo lugar, não tendo aparecido lista nenhuma – e continuando os dois funcionários a negar a sua existência – Passos Coelho devia ter dado crédito aos serviços em vez de aceitar as acusações da oposição, do sindicato e dos jornais.
Curiosamente, o presidente do sindicato, que foi uma das pessoas que mais agitaram este assunto, veio dizer ontem que afinal a lista se resumia a… quatro nomes!
Ou seja, não era uma ‘lista VIP’ mas um ‘poker VIP’.
Ao contrário do que acontecera noutras situações, em que Pedro Passos Coelho revelara capacidade de resistência e não se deixara ir na onda, o primeiro-ministro desta vez quebrou.
Talvez fragilizado pelo escândalozinho de que tinha acabado de ser vítima (o não pagamento há 15 anos de uns 2 mil e tal euros à Segurança Social), Passos deu o flanco e aceitou que os dois responsáveis pela Autoridade Tributária saíssem pela porta baixa.
Ora, eles estavam apenas a estudar a melhor forma de aumentar a segurança do sistema para evitar a devassa fiscal dos contribuintes.
Estavam, no pleno uso das suas competências, a agir no sentido de prosseguir o bem comum.
Aceitando a sua crucificação, Passos Coelho deixou passar a ideia (injusta) de que teriam cometido um qualquer pecado grave.
P.S. – Muito boa gente louva Assange, Snowden e em geral os homens que se têm dedicado nos últimos tempos a trazer para a praça pública segredos de Estado, registos bancários ou fiscais, ou práticas menos recomendáveis dos serviços secretos. Ora, estes homens não me merecem qualquer simpatia. Um denunciante é um denunciante. Por muita razão que tenha, um homem que trai quem lhe paga o ordenado é alguém que não merece confiança. As denúncias, a devassa de arquivos e ficheiros confidenciais, lembram-me sempre métodos pidescos ou inquisitoriais de má memória. No caso de Snowden, um homem que foge dos Estados Unidos para se ir meter na Rússia de Putin suscita-me as maiores reservas.