Um criador é alguém que inventa o seu próprio tempo e desenha o seu próprio espaço. Não se deixa ir a reboque nem em rebanho. Fernando Pessoa foi um desses seres de excepção. Herberto Helder também

A questão não é a da torre de marfim, mas a do farol: a iluminação é um ofício de intensidade e distância. Nenhum destes dois poetas se isolou voluntariamente do mundo: Herberto, como Pessoa, fartou-se da Universidade, trabalhou no comércio e na propaganda, escreveu para jornais. 

Maria Leonor Nunes, num dos pouquíssimos textos biográficos que se escreveram sobre ele (no JL, em 2008) reporta-lhe, além dessas, as seguintes profissões (em França, Bélgica, Holanda e Dinamarca): empregado de cervejaria, cortador de legumes, enfardador de aparas de papel, policopista, carregador de camiões, ajudante de pasteleiro, guia de marinheiros em bairros de prostituição. 

E ainda, de novo em Portugal, director literário da editorial Estampa, funcionário do serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, revisor tipográfico, redactor de noticiários da RDP e de publicidade. 

Ter muitos patrões para não ter donos, renunciar aos ardis dos poderes e das promoções, ter a coragem de viver por conta própria, e no escuro – porque é no escuro que a claridade da palavra brilha. 

Numa das raríssimas entrevistas que concedeu (a Fernando Ribeiro de Mello, no Jornal de Letras e Artes) dizia, aos 34 anos e com cinco livros publicados: «O prestígio que possa ter alcançado (prestígio equívoco no qual se integra a malquerença de alguma gente, que aceito com satisfação) não poderia constituir uma poltrona. O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento». 

Há em Herberto, desde o início, como assinalou a poeta e investigadora Maria Lúcia Dal Farra, uma «vocação de recusa». Em A Alquimia da Linguagem – leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986), escreve Dal Farra: «A tarefa de Herberto começa aí, no duelo contra o incrustado e automatizado, no trato de descascar cada camada sobreposta, a fim de perscrutar, nesse espectro, onde se guarda o 'descido' coração das coisas.» 

Rejeitou o Prémio Pessoa e todos os outros: pedia que nem o anunciassem e o dessem a outro. 

Num mundo de moralistas tonitruantes em constante competição de lucros e louvores, esta atitude ética radical surpreende: é, afinal, a continuação do poema que Herberto escreveu. 

Nos últimos anos, as edições restritas, especiais e muito mediatizadas criaram aquela fumaça atordoadora a que se chama 'polémica' – mas Herberto permaneceu em silêncio. Nunca se deixou embrulhar ou levar em embrulhos alheios. 

Gostava de cafés e tertúlias; nos idos de 80, era fácil encontrá-lo ao fim da tarde no Águia de Ouro, perto do Rossio. Conversas animadas onde não se falava de literatura. Nunca esqueci a primeira vez que o vi, na livraria da Assírio & Alvim. Entrei com o Jorge Colombo. Teríamos uns vinte anos. Quando o editor Hermínio Monteiro nos apresentou ao homem alto e barbudo que estava com ele, o Jorge exclamou: «Mestre! Julgava-o morto!». Herberto soltou uma gargalhada monumental e convidou-nos para o tal café onde vivia durante a tarde. 

Quando peguei no seu último livro, A Morte sem Mestre, voltei a ouvir essa gargalhada. Ouço-a de novo, potente, rasgando os véus das palavras, como os seus poemas. 

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