"Aqui promove-se o ódio", escreve no "Diário de Guantanamo", um relato de 466 páginas da sua transferência de prisão em prisão e da tortura a que foi sujeito, publicado em Portugal a 30 de Março pela Editora Vogais, do Grupo 20I20.
"Por um lado temos interrogadores que são preparados, formados e treinados para lidar com o seu pior inimigo; por outro, temos detidos que são presos e entregues às forças americanas sem nenhum processo judicial. Concludentemente, os detidos sofrem maus-tratos extremos e vêem-se encarcerados no outro hemisfério, na baía de GTMO, por um país que afirma proteger os direitos humanos em todo o mundo", escreve.
"Metamo-nos na pele de um interrogador. Foram literalmente ensinados a odiar-nos", afirma, explicando que é dada mais informação aos interrogadores sobre "o potencial comportamento dos detidos" do que sobre os dados que os serviços secretos recolheram sobre eles.
Nascido na Mauritânia há 44 anos, Slahi foi detido e interrogado pela primeira vez em Novembro de 2001, primeiro no Senegal, depois na Mauritânia, de onde foi transferido em voos clandestinos para a Jordânia, daí para o Afeganistão e finalmente para Guantanamo, onde permanece. Até hoje não foi acusado nem julgado.
A maior parte do seu relato diz respeito à experiência em Guantanamo, onde chegou em Agosto de 2002, e, a par da descrição das torturas, isolamento e ameaças de morte, vai caracterizando alguns dos interrogadores, guardas e médicos do campo de detenção, cujos nomes ou alcunhas foram censurados pela administração norte-americana antes de autorizar a publicação.
A pior fase da sua tortura em Guantánamo, entre 2003 e 2004, foi infligida por um interrogador sobre quem escreve: "Apesar de ser uma pessoa inteligente, tinham-lhe dado o pior trabalho da ilha e convenceram-no de que estava a agir corretamente. Estava sempre envolto num uniforme que o cobria da cabeça aos pés, pois sabia que estava a cometer crimes de guerra contra os detidos".
Deste interrogador, Slahi conclui que "estava no exército por uma boa razão: era bom a ser desumano", mas de outros fica-lhe uma impressão diferente, como um dos guardas, cujo nome é também censurado: "Posso dizer-vos com honestidade que não gostava de me molestar ou torturar".
"Acredite-se ou não, já vi guardas a chorar por terem de deixar o seu trabalho em GTMO", escreve Slahi, citando palavras amigáveis que lhe foram dirigidas por guardas em fim de missão: "Sou teu amigo", "Gosto muito de ti e gosto de falar contigo, és uma boa pessoa" ou "Espero que sejas libertado".
No auge da tortura, um guarda porto-riquenho que o levava da cela para a sala de interrogatório diz-lhe que não se preocupe, que vai voltar para a sua família. Slahi afirma que esta frase o fez chorar: "Ultimamente tornara-me tão vulnerável! Uma simples palavra de conforto naquele oceano de agonia era suficiente para me fazer chorar", escreve.
A tortura, escreve, é monitorizada por médicos e, também entre estes, há uns mais humanos que outros: "Para que (censurado) saiba quanta tortura um detido pode aguentar, é necessária assistência médica. Mandaram-me a um médico, um oficial da Marinha. Descrevê-lo-ia como uma pessoa decente e humana".
Noutro caso, porém, depois de uma simulação de rapto em que o envolveram em cubos de gelo e o obrigaram a beber água do mar enquanto o espancavam, Slahi perde a consciência ao ser devolvido à sua cela, onde é visto pouco tempo depois por um médico.
"'Se te mexeres, cabrão, vai doer-te!' (…) Aquilo não era um médico, era um carniceiro humano", escreve. "'Se tentares morder-me, vou magoar-te!', disse o médico, enfiando-me uma série de comprimidos na boca", "'Não tenho mais nada a fazer com o cabrão', disse, virando-me as costas ao encaminhar-se para a porta. Fiquei chocado".
Slahi conclui: "Os seres humanos odeiam torturar outros seres humanos e os americanos não são excepção. (…) Claro que em todo o lado existem pessoas doentes que gostam de ver os outros a sofrer, mas, regra geral, os humanos apenas usam meios de tortura quando se sentem confusos e caóticos. Sem dúvida que os americanos ficaram caóticos, vingativos e confusos após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001".
Lusa/SOL