O mito do mal

Chegou agora a Portugal o mais recente alarido de Houllebecq, o enfant terrible profissional da literatura francesa. Não gosto de usar palavras de outras línguas, acho que o cosmopolitismo bem organizado começa na própria casa, mas ‘criança terrível’ tem uma carga de acusação e seriedade que o original francês não tem. Talvez não sejamos dotados…

Chama-se Submissão o novo romance de Houllebecq, romance de tese com mais tese que romance. E a tese é a seguinte: em 2022, um partido islâmico moderado ganha as eleições em França, e a pátria-líder da civilização ocidental islamiza-se serenamente. 

Por causa desta hipótese ficcional, Michel Houllebecq tem sido acusado de islamofobia, o que não deixa de ser curioso porque a realidade que ele imagina como escolha da França do próximo futuro é igualzinha à de hoje nos mais brandos dos países islâmicos. Não se trata propriamente de um arrojo da imaginação.  

Utopias e distopias diversas têm alimentado a ficção ininterruptamente, pelo menos desde o século XVI. 

Criou-se a ideia de que as distopias acertam mais, porque o ser humano é feito de mau material. Vai-se a ver, e o Big Brother do 1984 de Orwell dança à música da democracia e torna-se sonho de sucesso, e as utopias igualitárias esboroaram-se em muros e gulags. 

Nunca nada é a preto e branco, e não me parece que as estatísticas dos grandes torcionários suplantem as dos grandes heróis. De resto, a própria grandeza é, em geral, turva.

Miguel Real publicou recentemente O Último Europeu, uma provocadora parábola sobre o fim da Europa que mostra o sereno horror da sociedade ideal: um universo em que a paz depende da ausência de sentimentos e pensamentos individuais, com os europeus em estado vegetativo, ligados a uma inteligência artificial. 

Até que um dia o Império dos Mandarins desliga os elaboradíssimos comandos dessa Europa irreal…e lá volta tudo ao princípio, numa ilha de promessa, neste caso os Açores. 

Estas narrativas fazem-nos pensar sobre o que somos, o que fazemos e, sobretudo, o que deixamos de fazer; é uma evidência que a Europa se deixou cair em letargia e não tem sabido defender as suas luminosas e árduas conquistas sociais e políticas. 

A Europa anda perdida mas não a deixaremos morrer – a submissão não é inevitável nem, na verdade, previsível. A imprevisibilidade é o grande factor contemporâneo; nada há de mais reaccionário e falso do que a nostalgia de um passado mítico. O modernismo por cumprir exige-nos comparência no presente, energia e claridade em vez de desistência e acatamento das trevas. 

As mais sábias frases do romance de Houllebecq são aquelas em que recorda que só a literatura «nos pode dar a sensação de contacto com outro espírito humano, com a totalidade desse espírito», morto ou vivo. 

Ora a literatura não acabou. Nem está à beira do enterro, apesar do caos crítico e mediático em que sobrevive, das mistificações e silêncios que a envolvem, da confusão entre trigo e joio que voluntariamente fazem dela os eternos interesseiros do caos que suspende o juízo. 

A literatura faz falar os mortos. Vence o tempo e o medo que lhe serve de capa. Ensina-nos a fabricar a liberdade e a fazer com que ela dure. 
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