Estes são apenas fait-divers recentes que ilustram uma parte cada vez mais visível do quotidiano português. A violência doméstica encadeia-se em sucessivos casos, com algumas características comuns: famílias desintegradas, rupturas sentimentais, situações de desemprego e marginalidade social, localização em bairros das periferias urbanas ou no interior profundo do país, dependência frequente do álcool e drogas por parte dos autores dos crimes.
A inquietante banalização destes acontecimentos brutais – e dos limites do horror já atingidos com o assassinío de crianças – exige um estudo sociológico profundo da terrível realidade que está a emergir da crise económica e social em que mergulhámos. Mas, enquanto isso não sucede – e espera-se que não demore – importa reflectir, desde já, no quadro mais vasto em que vai crescendo este surto de criminalidade cujas vítimas são, frequentemente, os mais fracos e indefesos, protagonistas acidentais de notícias de abertura mais ou menos sensacionalistas de telejornais e manchetes popularuchas para vender papel.
Que país é este onde a mancha dos horrores vai alastrando enquanto se instala uma espécie de amnésia e as atenções se refugiam num frívolo folclore político de que as candidaturas às presidenciais constituem um exemplo revelador? Eis uma questão que deveria despertar as consciências.
A violência doméstica tornou-se um verdadeiro cancro nacional: um terço dos homicídios são passionais, como recordava um artigo da anterior edição do SOL, apesar da confusão de estatísticas que impede um retrato rigoroso do problema. E há ainda, conforme noticiava o Público esta semana, um aumento anual de 50 por cento de queixas de violência no namoro em meio escolar.
Entre a família, formal ou informal, e a escola, o cancro da violência tende, pois, a metastizar-se, pondo a nu a vulnerabilidade crescente da coesão social. Vivemos numa sociedade gravemente doente, mas que foge a admiti-lo.
As formas mais atrozes de violência devem ser exemplarmente punidas – e nunca encaradas de forma laxista -, mas também é certo que a sua expansão coincide com o apodrecimento de referências éticas em múltiplos domínios da vida portuguesa, nomeadamente o mundo político e a administração pública.
Basta recordar os recentes casos dos vistos gold ou da 'lista VIP' dos contribuintes, com a revelação das sórdidas redes de promiscuidade e troca de favores entre sectores da política, dos negócios e do alto funcionalismo do Estado para concluirmos até que ponto descemos na escala de valores de uma sociedade civilizada. Expandiu-se uma atmosfera propícia à imunidade e ao salve-se quem puder.
Dir-se-á que isso não constitui propriamente uma novidade, mas porventura nunca como agora se assistiu a um strip-tease tão indecoroso dos costumes públicos. A própria linguagem com que os responsáveis comunicam uns com os outros no seu tráfico promíscuo atinge níveis de uma boçalidade inimaginável – como nas conversas divulgadas sobre os vistos gold.
Boçalidade é, também, o que caracteriza os comentários de membros de diferentes áreas da magistratura (!) em sites e redes sociais a propósito do caso Sócrates. Não há decoro, reserva, sentido da dignidade e da isenção, o que não só compromete o respeito supostamente devido à Justiça como coloca alguns dos seus agentes no mesmo plano linguístico rasca dos delinquentes vulgares. Mas, provavelmente, trata-se de matéria coberta pela impunidade corporativa…
Enquanto se cultivam abstracções económicas e miragens de crescimento, a sociedade corre o risco de apodrecer nas suas fundações, entre o crescendo da violência contra os indefesos, a imoralidade das práticas no funcionamento do Estado e até na linguagem cavernícola que se vulgarizou entre políticos, altos funcionários e magistrados. Nos bastidores do 'combate à crise', a que estado moral é que chegámos? Entre o horror e a amnésia, a distância é curta.