Do pop à paróquia

Não foi do cabaré para o convento, mas tal como a personagem interpretada por Whoopy Goldberg no filme com o mesmo nome, o percurso de Richard Coles começou na música até descobrir que era na vida religiosa que se sentia mesmo confortável.

Ao contrário de Delores (a personagem interpretada por Goldberg, uma cantora de casino) que só no convento saltou para a ribalta, na música Coles teve bem mais do que os seus cinco minutos de fama: era metade da dupla que formava os The Communards, uma banda pop dos anos 80 que lançou dois singles de sucesso mundial ( 'Don't leave me this way' e 'Never say Goodbye'). 

E o seu convento? A paróquia da Virgem Santa Maria, em Finedon, no centro de Inglaterra, a 100 km de Londres, ostentando o 'título' de padre mais conhecido de Inglaterra.

Os Communards foram uma banda com uma carga assumidamente política, de esquerda e defensora dos direitos gay. Uma agenda que deu nas vistas naquela década, quando a luta pelos direitos dos homossexuais estava ainda a ganhar força 

Para se ter uma ideia do ambiente que se vivia, fica o relato de Coles, numa entrevista que deu, em 2014, ao jornal britânico The Independent: “Perceber que se é gay na Inglaterra dos anos 70 era como ser pedófilo – uma vida que apenas oferecia desonra e que me magoava muito”. Numa palestra na vetusta catedral de S.Paulo – sobre uma muito falada autobiografia que lançou em Outubro e onde foi apresentado como “o único padre na igreja anglicana a ter um single que foi n.º 1 do top” – acrescentou que na adolescência a sua sexualidade era como um “segredo negro” que tinha de guardar a todo o custo. Foi-lhe tão penoso que se tentou suicidar. 

Nos anos 80 não era muito diferente, como se ouve em 'Smalltown Boy', de 1983, descrevendo a homofobia no país e na família, bem como os maus tratos a que os homossexuais eram sujeitos. A música é dos Bronsky Beat, a primeira banda em que estiveram juntos e onde Jimmy Sommerville cantava e Coles tocava saxofone. Seguiu-se os Communards.

Foram tempos épicos para ambos. De activismo e de sucesso musical, em que se transformaram em campeões de vendas e ícones gay. Mas a banda acabou e Richard Coles desceu aos infernos, numa espiral de depressão, dinheiro, droga e sexo casual. 

“A fama é uma coisa óptima, desde que seja póstuma. Distorce as coisas”, escreveu na referida biografia, intitulada Fathomless Riches – Or How I Went from Pop to Pulpit (no que se pode traduzir como Riquezas Insondáveis – Ou Como Passei da Pop Para o Púlpito). 

Sobre esses anos de fama conta que as suas memórias mais vívidas são de “um ciúme intenso, furioso, porque o Jimmy recebia mais atenção” .

Esses foram os “melhores tempos, mas também os piores”, porque apareceu a sida. No meio do caos emocional tem zona, doença comum entre os imunodeprimidos. E numa zanga com Sommerville decide atirar-lhe que é seropositivo. 

Todos os seus amigos acreditam e mantém a mentira durante cinco anos. “A parte mais difícil de admitir é que havia um glamour sombrio em testar positivo para o HIV, havia drama e eu era atraído para essas situações”. “Dá uma ideia da minha superficialidade”, resume secamente ao The Guardian.

A sida leva-lhe amigos atrás de amigos, e amantes também. Por causa dela, aproxima-se da Igreja. 
“A sida teve um papel fundamental na minha necessidade de Igreja”, relata, somando-lhe a vergonha: “Foi uma das razões que me levou a Deus, precisava de ser perdoado” .

O homem que, na adolescência, adorava música sacra, mas que não encontrava qualquer sentido nos salmos, e até formou um clube ateísta, converteu-se. Com estrondo, como tudo na sua vida. “Foi como se as faixas que apertavam o meu peito tivessem rebentado. E consegui respirar”. Tinha trinta e poucos anos e deu por si a ir para a universidade estudar teologia. Uma década depois era ordenado padre. Mais tarde, 'recebeu' a sua paróquia.

Na biografia relata a primeira parte da sua vida e já que ia contar a viagem que o levou da pop para o púlpito entendeu que devia dar a resposta “mais abrangente que pudesse”. Como amostra, a primeira página é dedicada ao relato de um dia de Natal, em que sai de casa dos pais em busca de um engate.

Têm-lhe comentado que a obra é “lancinantemente honesta”, o que Coles crê ter o significado de um recado: “Demasiada informação, vigário!”.

Durante os anos em que estudou, começou a participar em programas de rádio na BBC e depois em programas de televisão. E foi através do éter que chegou ao Twitter, onde é um astro com mais de 80 mil seguidores – em termos de comparação com uma estrela com algum fulgor, o guarda-redes da selecção inglesa Joe Hart, só tem cerca de 10 mil. Ali fala de tudo, dos cães, da vida, de temas políticos e de santos obscuros. Uma das últimas foi Santa Lidvina, “patrona dos skaters”, ironiza.

No programa que actualmente tem na rádio BBC 4, a voz de locutor, a perspicácia e as piadas quase constantes mantêm fiéis dois milhões de ouvintes todos os sábados, no programa ao vivo Saturday Live.

O celibato é outra faceta que o torna famoso. Na Igreja anglicana os clérigos podem casar. Como Richard é gay e o Reino Unido não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tem uma união civil . “Quando entrei para a Igreja pensei que estava 'fora de combate', mas depois encontrei o David”. O David em causa é o reverendo David Oldham, agora David Coles, que também no Twitter levanta uma grande ponta do véu da vida em comum.

Não foram celibatários o tempo todo, mas a Igreja que os permite viver juntos assumiu a “doutrina completamente ridícula” de que os prelados do mesmo sexo, a viver em união estável, não devem ter relações sexuais. Para Coles isso “não faz sentido nenhum”, mas concede que não lhe traz grandes sacrifícios, porque já lhe apetece “cada vez menos e a cada vez maiores intervalos”.

A biografia – cujo corajoso realismo lhe valeu ser um dos homens de 2014 para o Guardian – termina na ordenação. Mas já está prometido um segundo volume para começar onde o primeiro acaba. 

Ainda sem edição portuguesa, só pode ser lido em inglês. Tal como só pode ser vista em Inglaterra uma série inspirada por este vigário. Em tom cómico, Rev conta a história de um pároco e as suas aflições diárias. Num episódio, o reverendo encontra Deus, representado por Liam Neeson, que dança e canta com uma lata de cerveja na mão, de fato de treino, e a responder aos problemas do pároco com provérbios. “Todos carregamos as nossas cruzes”, acaba Deus por dizer, acrescentando: “Eu percebo. Vou estar sempre aqui”. Um Deus pouco convencional e bondoso. O Deus de Richard Coles.  

teresa.oliveira@sol.pt