Aos quatro anos já tinha uma mota de verdade. Aos nove recebeu de presente as cartas de amor da heroína Manuela Saenz para Simón Bolívar. E aos 13, um apartamento de luxo. Juan Pablo Escobar (n. 1977) teve uma infância ao mesmo tempo privilegiada e amaldiçoada graças aos negócios do pai, o traficante Pablo Escobar (1949-1993). Em 1988 sobreviveu a um atentado à bomba – o tecto caiu-lhe em cima enquanto dormia, e só uma escultura de Fernando Botero impediu que o esmagasse. Após a morte do pai, procurou asilo nos EUA (recusado), fugiu da Colômbia e vive há duas décadas exilado em Buenos Aires, após uma passagem-relâmpago por Maputo. E até mudou de nome, para Sebastián Marroquín.
No seu livro Pablo Escobar – O Meu Pai (Planeta), Juan Pablo revela como o progenitor começou a carreira no mundo do crime através de pequenos delitos e chegou a vender lápides. Conheceu o seu mentor, o contrabandista Alberto Prieto, El Padrino, na prisão, e mais tarde descobriu a sua galinha dos ovos de ouro: a cocaína. A obra conta também pormenores pessoais: que o pai cortava o cabelo a si próprio, tomava duches de três horas, escovava os dentes durante 45 minutos e nunca deixava que o vissem fora de si. Algumas páginas são dedicadas ao rancho Nápoles, onde havia uma pista de aviação, um esconderijo com armas e dinheiro, um jardim zoológico com todo o tipo de animais selvagens e dinossauros de cimento em tamanho real, que as autoridades destruíram porque achavam que serviam para esconder maços de notas.
Por fim, Juan Pablo faz algumas revelações explosivas: que o ditador Noriega deu guarida ao seu pai no Panamá, que Frank Sinatra distribuía droga vinda da Colômbia e que Pablo Escobar não foi morto mas sim que se suicidou com um tiro.
Lembra-se de terem tirado esta foto [em cima]?
Lembro. Foi na prisão La Catedral. Fizemo-la porque era Natal. O último Natal que passámos juntos.
Mas não parece nada uma prisão…
É verdade. Parece mais um hotel do que uma prisão.
O seu pai podia levar para lá tudo o que quisesse?
Tudo. Não havia limites [Escobar tinha um verdadeiro arsenal com os mais recentes modelos de armas, recebia a visita de misses e mandava fazer a decoração de acordo com o gosto da mulher].
Então qual era a diferença entre estar ali ou em casa?
Nenhuma, a não ser que podíamos visitá-lo.
Para vocês era bom que ele estivesse preso, pois não precisava de andar escondido e assim podiam vê-lo, não é verdade?
É isso mesmo. Eu tinha muitas ilusões de que ele ia passar vários anos da sua vida ali na prisão, tinha a esperança de que ele ia cumprir uma longa pena e que no final regressaria a casa e viveríamos tranquilos e juntos. Mas ele deitou essa oportunidade para o lixo.
Na fotografia está sentado na cadeira do seu pai. Alguma vez pensou que poderia vir a ocupar o lugar dele?
Ainda penso. Todos os dias da vida. E todos os dias digo 'não'.
E o seu pai, alguma vez o viu como sucessor?
Ele sempre me disse que se eu quisesse ser médico, me daria o melhor hospital da cidade. Que se eu quisesse ser cabeleireiro, me daria o melhor salão. Nunca me disse 'quero que sejas como eu'.
E você, o que queria ser?
Naquela altura ainda não sabia. Uma coisa que sempre me atraiu foi o design industrial. Eu contava-lhe isso e ele dizia-me que eu podia ser um grande designer de automóveis, se quisesse.
Acabou por cumprir esse sonho.
Sim, sou designer industrial e arquitecto. São duas carreiras que se complementam. E hoje penso que não foi por acaso. São coisas que têm que ver com a construção e não com a destruição. Por alguma razão não fui para o ramo das demolições…
Aos quatro anos recebeu uma Suzuki amarela, aos nove um cofre com as cartas de amor de Manuela Saenz para Simón Bolívar, aos 13 um apartamento de luxo que tinha um espelho por cima da cama. Tudo presentes muito caros…
[risos]
Era um miúdo mimado?
Não tenho dúvida nenhuma de que sim. Mas nenhum desses presentes durou muito. E isso tinha que ver com a nossa vida. Parecia que éramos donos de tudo mas não éramos donos de nada. Tínhamos muitos carros mas não tínhamos a liberdade para andar neles. Tínhamos muitas propriedades mas não vivíamos em nenhuma delas. Tínhamos muitos luxos mas não os podíamos desfrutar. No fundo não tínhamos nada. Nunca fomos tão pobres como quando éramos ricos.
Ter crescido no meio dessa abundância moldou a sua personalidade? Por exemplo, ainda gosta de coisas caras?
Quem não gosta? Mas aprendi que as coisas caras não me definem. Hoje não as posso comprar, mas não ando a chorar por causa disso. Desfruto mais de andar debaixo da chuva do que sendo dono de um Ferrari que não posso pagar. Não preciso do melhor quarto num hotel de cinco estrelas para observar o mar, sem ter de olhar para quem está atrás. Isso vale milhões para mim. Porque quando tive milhões não podia fazer nada do que posso fazer hoje, que não tenho nada. Então digo que me sinto muito mais milionário hoje porque sou um homem livre, vivo em paz e ando tranquilo pela rua.
Hoje pode andar tranquilo na rua?
Tirando a Colômbia, em qualquer parte do mundo.
E na Colômbia?
Na Colômbia não, por causa do livro. Irritei algumas pessoas a quem não interessa que se revele o que eu revelei. Mas eu sabia que isso poderia acontecer. Para mim a verdade é mais importante que as ameaças. Podem-me matar, mas ao livro já não.
Foi ameaçado?
Não explicitamente. Mas há muitas maneiras de ameaçar…
Ainda assim a Colômbia está hoje muito mais pacificada.
Sem dúvida. Estou crente de que a Colômbia vai por um caminho correcto. Se me perguntasse o mesmo nos anos 90 eu dizia-lhe que a Colômbia não tinha futuro. Graças a Deus estava equivocado.
Em parte isso é o resultado da morte do seu pai?
Não, não, não.
E dos acordos de extradição com os Estados Unidos, a que ele tanto se opôs?
Pareceria que tem relação com o que diz, mas é uma questão muito mais geral. Depois da morte do meu pai, durante muitos anos a Colômbia não foi um país melhor. Na realidade foi pior.
Pior?
Não tenha dúvida. O Estado colombiano, no seu afã de combater o meu pai, de o caçar e de matá-lo, acabou por aliar-se com os inimigos do meu pai, que eram os seus antigos amigos e sócios. O que ficou dessa guerra? Alianças difíceis de desfazer entre o pior mundo da delinquência colombiana e o Estado. Poderíamos dizer que a guerra que opôs o meu pai e o Estado fez uns dois mil, três mil mortos, no máximo. Depois de o meu papá ter desaparecido, o paramilitarismo surge com uma força nunca vista. E já não era um grande capo [chefe] com um exército, eram 200 ou 300 capos cada um com o seu exército privado. De acordo com testemunhos que obtive junto de pessoas que estão agora detidas, cada um desses exércitos foi responsável por três, quatro, cinco mil mortes.
Quando começou a dar-se conta dos sinais de uma vida ligada ao crime à sua volta?
Em Agosto de 1994. Com a morte do juiz Rodrigo Lara Bonilla. A nossa vida mudou radicalmente, não havia forma de voltar atrás. Mudou a maneira como se falava do meu pai, o que se dizia nas notícias. Não dá para tapar o sol com as mãos. E o meu papá também nunca me quis vender uma história diferente. Falava-me muito directamente. Sem meias-tintas.
O que lhe dizia?
Uns anos depois, quando estávamos juntos, víamos uma notícia sobre ele e eu perguntava-lhe se era como diziam. E ele confirmava: 'Tem de ser assim, filho'. Não tinha qualquer problema em assumir um crime perante o filho.
Assistiu à violência ou o seu pai protegia-o?
Ele queria dar-me essa protecção. Mas havia vezes em que era quase impossível esconder. Não podes atravessar pântanos toda a vida sem te salpicares. A violência rodeava-nos, onde quer que estivéssemos.
Mas estava onde? Nos jornais, na televisão, ou viam-na de perto?
Basta dizer que os grandes delinquentes da Colômbia eram as minhas babysitters. Vi muito menos do que poderia ter visto, mas percebia o que se passava.
Havia armas em casa?
Havia mais armas do que há aqui cadeiras [dezenas].
Pegava-lhes, mexia nelas?
Sim, o meu papá ensinou-me desde muito cedo a respeitá-las, a manejá-las e a disparar. Não o fazíamos contra pessoas, fazíamo-lo contra as lebres, que eram uma praga na fazenda Nápoles. Só que em vez de sairmos de casa com uma caçadeira, saíamos com uma AR15, com todo o tipo de metralhadoras… [risos]
Conta no livro que o seu pai o aconselhava a trair a sua namorada, dizia-lhe que não era a única mulher no mundo. Além desse, que tipo de conselhos lhe dava ele – bons e maus?
Quando eu era muito novo, deu-me uma lição sobre as drogas. Pô-las em cima de uma mesa e ensinou-me a distingui-las, uma a uma. Assumiu que as tinha consumido todas, à excepção da heroína. Pareceu-me um acto de grande valentia e de grande honestidade, ele, como pai, dizer que as tinha consumido e descrever com todo o detalhe os efeitos que sentiu. E disse-me 'um dia que queiras provar alguma chamas-me e provamos juntos. Se sentires essa curiosidade, não o faças com os teus amigos, porque podem dar-te qualquer lixo que te faz mal, enquanto eu só te dou a que eu próprio provar'. Essa conversa acabou por legalizar as drogas para mim, para o meu mundo. Deixaram de ser proibidas. Isso serviu de antídoto. Não havia miúdo mais exposto às drogas na Colômbia do que eu e no entanto hoje continuo 100% longe delas.
Chegaram a provar drogas juntos?
Não. Só provei marijuana aos 28 anos.
E o que achou?
Pareceu-me que faz menos mal do que o álcool. Há tipos que tomam álcool e ficam supremamente violentos. Qualquer coisa pode fazê-los armar uma briga num bar. A marijuana só te dá fome, sono e faz-te rir. Não passa daí.
Acredita que a legalização das drogas poderia resolver o problema?
Sem dúvida, embora não possamos pôr todas as drogas no mesmo saco. Não sei para que servirá a legalização, mas sei para que serve a proibição. 40 anos de experiência provam que só serve para fomentar o consumo, a violência e a corrupção.
Além de lhe falar sobre as drogas, que outros conselhos lhe dava o seu pai?
Dizia-me para estudar, para dizer sempre 'obrigado', para ser humilde, para nunca abusar da minha posição como 'filho de', para não usar jóias.
E fazia o que ele dizia ou por vezes tinha a tentação de usar o apelido…?
Não, não! O apelido não. Mas lembro-me que muitos queriam cair nas boas graças do meu pai e nos aniversários davam-me pulseiras, cordões e anéis de ouro. Um dia o meu pai chamou-me e disse à frente de toda a gente: 'Tira isso. Achas que és mais homem porque tens um cordão de ouro pendurado?'.
A seguir à morte do seu pai visitou com a sua mãe os chefes do tráfico na prisão Modelo, para negociar a sua vida. Diz que os presos podiam emborrachar-se e receber as suas mulheres. Que tipo de prisão era essa?
Igual a todas as prisões do país e de todas as partes do mundo. Na prisão tudo é proibido, mas consegues arranjar tudo o que quiseres. É a lei do ser humano, procurar os arranjos necessários para sobreviver. A droga está proibida nas prisões, mas não há nenhum lugar onde seja mais fácil obtê-la do que dentro de uma prisão.
Tinha medo quando visitava essa prisão?
Claro. Sentia que qualquer um me podia matar. E aqueles que me escoltavam também o sentiam.
Ainda guarda o relógio de 100 mil dólares que o traficante Urdinola lhe ofereceu quando o foi visitar à prisão?
Tenho. Ele foi confiscado, depois estragou-se porque a pilha se sulfatou [largou líquido]. Não passa de um pedaço de maquinaria oxidada.
Nessa altura tinha a cabeça a prémio. Como era a sua vida? Podia sair à rua?
Sempre que saíamos andávamos com protecção, com escoltas, ou escondidos, mantínhamos segredo acerca de onde íamos dormir. Nem a família sabia. Convivi com o medo desde muito cedo. Sempre tive de lidar com o receio de que sequestrassem ou matassem o meu pai. Puseram-nos bombas, atiraram-nos com granadas, disparos. Não houve tempo nem para ficarmos traumatizados.
E agora, já passou o tempo suficiente para ficar traumatizado?
Não. Temos de aprender com as lições que a vida nos deu. Utilizar isso para vitimizar-me, para me sentir mal, para andar a bater com a cabeça contra as paredes, para me atirar de uma varanda, isso não. Não sou muito amigo de andar por aí a choramingar ou a dizer que estou traumatizado, que preciso de ajuda de um psicólogo.
Não acredita nos psicólogos?
Quando era muito pequeno visitei um psicólogo contra a minha vontade. Não sei se ajudou ou não, era demasiado pequeno para perceber. Mas acho que me cabe a mim resolver os meus problemas. Se comparasse outros casos com o meu teria de me atirar da torre Eiffel. De cabeça.
E como é que Andrea, a sua namorada, suportou todas essas privações?
Não sei. Tem de se ser um kamikaze para passar por isto voluntariamente. O poder do amor cega as pessoas, e acho que só estando cega pôde suportá-lo. É uma mulher a que eu dou muito valor. Não sei como suporta toda esta pressão, porque podia ter outra vida.
Ela não o recriminava pelos problemas que passou por sua causa?
Nem uma única vez. Em 23 anos de vida ao seu lado, nunca ouvi nada disso.
Ela hoje trata-o por Juan Pablo ou por Sebastián?
Por Sebas. Não há uma única pessoa da família que me chame Juan ou Pablo, acostumaram-se a chamar-me Sebastián por uma questão de segurança.
E que importância teve essa mudança de nome na sua identidade?
Descobri que não sou o meu pai, não sou o meu apelido original, não sou os meus antepassados. Eu sou os meus actos. Juan Pablo, Sebastian, Pedro ou Luís, pouco importa. Somos os actos que fazemos, não os apelidos ou a nacionalidade.
Disse que não consulta psicólogos, mas no livro refere que o astrólogo Mauricio Puerta [que previu que Pablo Escobar ia ser morto no ano de 1993] nunca falhou.
Tudo o que eu estou a viver hoje, ele previu. Tenho-o gravado em cassete. Quando já tínhamos o plano para ir viver para Moçambique – e ele não o sabia – perguntámos-lhe onde íamos viver. E ele dizia, sem titubear, 'Vão viver numa cidade onde há um rio muito importante'. Em Maputo não há nenhum rio importante e nós gozávamos com o que dizia Mauricio Puerta. Mas três dias depois estávamos em Buenos Aires ao lado do rio da Prata.
Continua a consultá-lo?
Não, não. Essa foi a única vez. Não ando na vida guiado por isso.
Como foi recebido o seu livro na Colômbia? O que disseram a TV, os jornais?
Pensava que o mundo me ia cair em cima, que iam atacar-me de todos os lados, por causa do que revelei no livro.
Pensava que o livro ia cair como uma bomba…
Como uma não, como várias [risos]. Fui à Colômbia defender o livro, dei a cara, durante dez dias estive num hotel onde todos os diários, as rádios, os jornais, todos sabiam onde me encontrar. E recebi-os a todos. E todos só me perguntavam banalidades.
Por exemplo?
Sei que no meu livro há elementos escandalosos para a política colombiana. Publico a foto de um Presidente saudando muito carinhosamente a minha mãe. Um Presidente cuja campanha foi financiada na totalidade pelos dois grandes sócios do meu pai. Ninguém disse nada, ninguém perguntou nada. Pensei que iam aparecer 200 tipos para me atacar e não apareceu um só. Isso deixa-me muito contente por um lado e muito triste por outro. Contente porque as verdades reveladas no meu livro são contundentes e irrefutáveis. Triste porque não vai acontecer nada com elas.
Sofreu pressões enquanto escrevia o livro?
Claro! E nenhuma foi eficaz porque escrevi o que quis. Contei as histórias sem disfarces, fui fazer pesquisa, andei a perguntar onde não devia. O melhor exemplo da independência deste livro é que não falo mal de Fujimori. Não estou disposto a fazer favores aos gringos com os seus complôs. Não sinto qualquer animosidade contra eles, simplesmente não me presto a dizer mentiras. Não vou fazer de idiota útil para esse tipo de jogos. Nunca.
Poderia ter escrito este livro caso os irmãos Rodriguez Orijuela [chefes do cartel de Cali], por exemplo, não estivessem presos nos EUA?
Não, não poderia. Ou se Castaño [Carlos Castaño, líder paramilitar] estivesse vivo. Porquê? Porque também sou pai e sou responsável pela vida do meu filho. Não vou pôr a minha vida em risco por um livro. Se a editora me tivesse contactado um ano antes, teria dito que não. Mas entretanto aconteceram muitas coisas: uns foram mortos, outros foram presos, outros perderam o poder. E pude escrever o livro.
Lidou com vários chefes do narcotráfico. São tão maus como os imaginamos ou são pessoas como as outras?
[risos] São tão calmos como você e eu, mas mandam matar com a mesma tranquilidade com que nós estamos aqui a conversar. E podem dizer-te que te vão matar com um sorriso nos lábios.
jose.c.saraiva@sol.pt