O novo modelo de transporte aéreo (que põe fim ao monopólio repartido entre a TAP e a SATA) foi celebrado com euforia. É uma mudança histórica, como concordariam mais tarde numa cerimónia oficial representantes da República (entre eles o ministro Poiares Maduro) e do Governo Regional, incluindo o presidente, Vasco Cordeiro. No dia seguinte, o vetusto Açoriano Oriental, que se intitula o mais antigo jornal português, dedicava-lhe manchete e reportagem. Com as tarifas a cair para cerca de um terço (a Ryanair começaria também a voar para São Miguel no dia 1 de Abril), os Açores vão tornar-se um destino competitivo, quebrando a ideia de inacessibilidade que durou décadas. Será mais fácil um açoriano sair do arquipélago e mais barato um português do continente visitar as ilhas envoltas numa névoa de desconhecimento e de lugares-comuns.
“Acreditem, a expectativa é enorme e muita coisa irá acontecer”, assegura Rui Amen, gestor de produto do Turismo dos Açores e o mestre de cerimónias nesta volta à ilha de autocarro em dois dias, oferecida a um grupo de jornalistas. Rui Amen fala com o entusiasmo de um outsider e o conhecimento de um autóctone. É um pouco das duas coisas. Nascido no Porto, inscreveu-se na Universidade dos Açores e acabou por ficar não apenas durante a licenciatura em Biologia mas um total de 22 anos. Conhece as lendas e os dados históricos e científicos e é uma enciclopédia viva e, no caso, ambulante. Resumindo, graceja: “Nova Zelândia, Escócia, Irlanda e Hawai, mete-se tudo na Bimby e temos os Açores”. A situação geográfica e o clima pouco soalheiro dos Açores permitem acreditar que, mesmo no novo paradigma, dificilmente a região ficará presa num turismo de massas, que prefere sol e praia. Se a ideia for juntar low cost e natureza, não há lugar para desastres turístico-ambientais, prevê o nosso guia optimista: “Pelo contrário, temos muito a ganhar e a aprender”, diz Rui Amen, adiantando que o arquipélago é valorizado pela sua sustentabilidade ambiental e isso é um valor a manter, obrigatoriamente.
A primeira paragem é também um dos cartões-postais da ilha, a Lagoa das Sete Cidades, votada como uma das Sete Maravilhas Naturais de Portugal. Vemos os dois tanques gémeos de água verde e azul a partir da chamada Vista de Rei, assim cunhada graças à visita, em 1901, do Rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia. A ensombrar a beleza desta reserva de água doce, a maior do arquipélago, está o Monte Palace, um hotel de cinco estrelas nos anos 80, com luxuoso spa e casino, e que é agora um monte de betão à espera do camartelo. Um erro de localização, imagina-se, já que a 500 metros de altitude e com nevoeiro não há vista que resista. É de erros como este que os intervenientes do turismo dos Açores têm medo. Mas mesmo assim já há uma nova dinâmica na hotelaria. Três dias antes da primeira aterragem de um voo low cost, abriu, na freguesia de Povoação, o Furnas Boutique Hotel, um velho edifício do século XIX que aproveita as águas férreas quentes da zona. Agora remodelado e com interiores de Nini Andrade Silva, a premiada designer também nascida numa ilha – mas não nos Açores, na Madeira. Com 55 quartos, destina-se a um perfil de clientes cosmopolitas entre os 30 e os 45 anos, e tem como chefe do restaurante, Hugo Ferreira, que colaborou com Luís Baena no Notting Hill Kitchen, em Londres. O fundo que comprou em hasta o edifício e o transformou, o Discovery Hotel Managemnet, tem também prevista para o início de 2016 a abertura do Hotel Príncipe do Mónaco, conhecido como hotel-casino, na marginal de Ponta Delgada.
Marginal de Ponta Delgada
A capacidade de adaptação da pequena indústria de São Miguel aos novos tempos é constantemente observada neste périplo de dois dias, como se a ilha rentabilizasse a máxima de 'quando a vida te dá limões faz limonada'. A transformação da caça à baleia numa actividade regulada por leis internacionais de protecção da natureza é um exemplo disso. Em 1984 capturou-se o último grande mamífero marinho e a partir daí as águas atlânticas de São Miguel são cruzadas por embarcações repletas de turistas à procura do momento mágico em que se avista a silhueta comovente de uma baleia. Num passeio de mais de três horas que proporcionou um belo enjoo a dois elementos do grupo, avistamos primeiro três cachalotes e, mais à frente, um outro faz o mergulho em profundidade, exibindo a barbatana caudal, perante o silêncio reverente de todos os ocupantes do barco. “Vocês tiveram sorte”, diz Hugo Mendes, o biólogo da tripulação, garantindo que há meses não via um único cachalote. Não é só pura sorte. Em terra, há vigias com binóculos militares que vão dando instruções e coordenadas por rádio. Somos ainda brindados com a curiosidade de um grupo de golfinhos, o que adoça a viagem de regresso a terra num mar crispado. “Não aconselhamos que pessoas com problemas de coluna ou grávidas em fase incial façam o passeio”, avisa Hugo Mendes numa aula prévia, nas instalações da Picos de Aventura. Registámos no nosso corpo com algumas nódoas negras que, de facto, não é aconselhável. Mas o momento em que se avista um destes espécimes em vias de extinção compensa os danos.
A cerâmica Vieira é outro exemplo de empresa que aproveita velhas tradições servindo-se de novas alianças. Um autocarro de turistas alemães (a Alemanha é um dos grandes mercados de São Miguel) enche a salinha onde uma funcionária pinta a azul o característico barro vidrado a branco. António José da Silva Vieira, com 84 anos, actual dono da pequena fábrica fundada em 1862 , começou a trabalhar aos 20 anos e assistiu à transformação da sua fábrica que fazia telha com barro importado. “Agora com a crise da construção já não as fabricamos”, reconhece, salientando que as visitas dos turistas são bem-vindas. Depois de apreciarem o labor, alguns alemães abrem os cordões à bolsa na loja da cerâmica Vieira, que ostenta o lema açoriano 'Antes morrer livres que em paz sujeitos'.
Consumir depois de ver é um estilo em São Miguel. Antes do almoço, a peregrinação ao Parque das Furnas, um local onde se vê a água a borbulhar a sair da Terra, é obrigatória. Os vapores de cheiro intenso que saem do chão, uma manifestação secundária de vulcanismo, servem para confeccionar o célebre cozido, semelhante ao cozido à portuguesa mas numa versão slow cooking e literalmente ecológica. Até há bem pouco tempo usufruir desta cozinha natural era gratuito, mas antecipando a enchente de turistas, o município de Povoação impôs taxas: 0,50€€para entrar no parque, 3€ para enterrar a panela e estacionamento pago à parte. Iremos ver o enorme panelão de onde sairá o nosso almoço ser recolhido após seis horas fechado num buraco. Será depois transportado para o Terra Nostra Garden Hotel, uma maravilha da hotelaria Art Déco, reaberto e melhorado há coisa de dois anos. O cozido é aqui servido em grande requinte e antecede a possibilidade de um banho de imersão na água férrea, quente e cor-de-laranja, com propriedades termais, no grande lago a céu aberto. Outra possibilidade é o passeio ao Parque Terra Nostra, criado no início do século com uma exuberância botânica admirável. Aqui está uma das maiores colecções de camélias do mundo, com cerca de 600 variedades.
Lagoa de água férrea e quente no Parque Terra Nostra
Um visionário que levou a luz à ilha
Mas se há local que vive há décadas deste comércio sentimental em que se compra aquilo que se vê e se ama, esse local é, por excelência, o Chá Gorreana. A produção de chá começou em São Miguel, após os laranjais terem sido dizimados por doença em 1872. Em 1883 produziu-se o primeiro chá da fábrica, com as folhas da camellia sinensis. Actualmente, São Miguel é o único local na Europa onde se produz chá em duas fábricas, a Gorreana e a Porto Formoso. Mas foi, diz Madalena Mota, representante da quinta geração da família proprietária, o avô Jaime Hintze quem gerou o espírito que ainda se vive na empresa.
Jaime Hintze era um visionário que chamou perceptoras alemãs para educar os filhos e que criou uma hidroeléctrica para fornecer energia à fábrica com a força motriz de um ribeiro. Foi o primeiro sítio em São Miguel a ter electricidade e as pessoas iam ver a luz. “A todos, o meu avô oferecia um pacotinho de chá e toda a gente era bem vinda”. A empresa passou por dificuldades, mas continua a ser ponto de peregrinação, onde se pode ver as máquinas do início do século XX ainda a funcionar a corrente contínua, assistir a todo o processo de produção e beber-se um dos chás. Tudo isto sem pagar. “Seria uma grande traição ao espírito do meu avô cobrar as visitas, ou uma chávena de chá. Sentimos que a fábrica não é nossa, é de toda a povoação”, diz Madalena que garante que não há um dia do ano em que a fábrica encerre. “Em Agosto chegamos a gastar 400 euros só para papel higiénico, com tantas visitas”, ri-se Madalena. “E se vierem mais serão todos bem-vindos”, garante. Ninguém é levado a comprar, mas a verdade é que fica a imagem de uma empresa feliz, com métodos de produção artesanais, biológicos e que não tem nada a esconder. Isto é o melhor cartão-de-visita dos Açores.
A jornalista viajou a convite da easyJet