Frederico Marques dispensa as rotinas do sono. Quando a balança acusou 95 quilos, no Verão de 2013, suplicou por um desafio extremo. Sentia-se uma “bolinha” ao lado de João Sousa, na altura à beira do top-100 do ranking mundial. “Sou do tipo de pessoa que come um croissant e passada meia hora vejo-o aqui na barriga”.
O treinador meteu na cabeça que tinha de sofrer na pele o desgaste de jogar cinco sets para melhor compreender o esforço do seu pupilo. E, pensando bem, também daria jeito poder acompanhá-lo mais do que dez minutos nos treinos de natação, de bicicleta e até nos de ténis.
A primeira ideia que lhe ocorreu foi fazer uma maratona, mas isso “seria fácil”, tendo em conta o passado de desportista. “Precisava de uma coisa que me fizesse acordar de madrugada, que fosse muito complicada e me permitisse ganhar o respeito do João”, explica Frederico Marques ao SOL. Certa noite, durante um torneio em Itália, estavam os dois a ver televisão. O zapping travou num canal norte-americano. Nas imagens, um evento desportivo chamado Ironman, o homem-de-ferro – igual ao triatlo, mas com distâncias maiores.
“Via-se pessoas de rastos, algumas a vomitar, e um show off brutal, à americana. Uma das provas mais difíceis do mundo, não sei quantas horas a nadar e mais não sei o quê. Virei-me para o João e disse: 'É isto mesmo. Daqui a um ano tenho a medalha disto, tu vais ver'. 'Alguma vez, Fred? Estás a brincar? Isto é duríssimo, tu nem uma maratona acabas'. 'Ai não?'“.
Assim que chegou a Barcelona – onde se radicou há dez anos e conheceu João Sousa -, este natural de Lisboa comprou uma bicicleta. Já andava a correr e começou também a nadar. “Era o pior. Eu não avançava na água, parecia um tijolo”. Nada que o demovesse. Em Julho do ano passado completou o seu primeiro Ironman, em Zurique. Demorou quase 15 horas a percorrer os 3,8 quilómetros de natação, 180 de ciclismo e 42 de corrida, mas afinal aquele não era o fim da linha.
Mais difícil do que o Ironman é o Ultraman e Frederico já pagou os 1300 euros da inscrição para estar no Canadá, de 1 a 3 de Agosto, a cumprir o dobro das distâncias. O equivalente a atravessar o Tejo a nado na zona da Ponte Vasco da Gama, ir de Santarém a Bragança de bicicleta e de Gaia a Viana do Castelo a correr.
“As pessoas dizem que estou maluco e eu sei que estou, mas senti essa necessidade. Já assinei o papel que me enviaram a assumir que, se morrer, sou eu o responsável”, conta, divertido.
Do Canadá só quer a medalha de participação. A maior vitória, diz, reside “na constância de todos os dias” se alimentar bem e treinar à hora que lhe é possível, seja “às quatro da manhã ou à meia-noite”, consoante o trabalho com João Sousa o permite. Em 2015 já estiveram em torneios na Nova Zelândia e na Austrália, em França e na Holanda, no Dubai, nos Estados Unidos e no Mónaco. E esta semana vão estar em Portugal para a edição de estreia do novo Estoril Open.
A preparação para as provas de Ironman é um meio para Frederico romper com as exigências do circuito ATP, que o consomem quase 24 horas por dia. Aos 28 anos é hoje o mais jovem técnico de um jogador do top-100 – João Sousa já chegou entretanto a 35.º do mundo e é agora 56.º. “Acordo de manhã e sinto: 'Este é o meu momento'. Desligo o telefone, não quero saber de emails e vou correr 20 quilómetros. Depois tomo o meu banhinho e a partir daí esqueço o Fred e a minha vida é o João”.
Frederico Marques é muito mais do que um treinador de ténis. As suas tarefas estão longe de se esgotar nas quatro horas diárias de trabalho de campo: “Essa é a parte mais fácil”. Saber se os hotéis têm piscina ou se o ginásio tem as máquinas certas passou a ser uma preocupação nos últimos anos, por causa do seu novo passatempo. Mas já era ele quem tinha de marcar os locais para dormir, assim como as viagens de avião, os transportes a partir do aeroporto ou os restaurantes.
Também lhe cabe medir a humidade do ar para assegurar que as cordas das raquetes estão com a tensão correcta, agendar treinos com jogadores cujo estilo de jogo seja parecido com o do próximo adversário e controlar a qualidade das bolas. Se o boletim meteorológico informa que no dia a seguir vão estar três graus às nove da manhã, não pode usar as que ficaram no court, pois “vão estar geladas e nem saltam”. Meia hora antes do treino, agarra em bolas novas e mete-as no aquecedor de casa para evitar que João Sousa arranque o dia com “aquela sensação de tocar na bola e ela ficar logo na rede por causa do frio”.
É um “trabalho invisível”, habitual entre os técnicos que trabalham com os melhores tenistas do mundo. “A minha vida é jogar xadrez. Tenho de estar sempre a pensar seis ou sete jogadas à frente para tentar que o João esteja apenas focado em jogar ténis”, resume Frederico, que também exerce a função de conselheiro sentimental. “Como costumo dizer, eu vivo a vida dele. Se há um problema com a namorada, eu telefono à namorada: 'Por favor, não o chateies'“.
A alimentação chega a ser uma obsessão. Muitas vezes é o treinador que 'faz o prato' do jogador. Questões aparentemente triviais como se o arroz deve ser integral ou não ou se pode usar mais ou menos azeite são debatidas entre os dois. “No Rio de Janeiro é muito porreiro ir ao sushi, mas não vai comer peixe cru antes de um jogo super importante. Pode ter alguma bactéria. E se vai comer carne tem de ser bem passada”.
Já os produtos vitamínicos a que recorrem são um segredo bem guardado, muitas vezes passado pelo staff de Rafael Nadal. Frederico trabalha numa academia de ténis em Barcelona que é dirigida por Francisco Roig, segundo treinador do tenista espanhol. E o preparador físico é seu habitual companheiro de treino nas aventuras do Ironman.
“Enquanto corremos estou a aprender: 'Olha que para alongar este músculo é melhor fazer assim, para comer é melhor aquilo e agora mudámos para estas vitaminas'“.
Entra em acção o seu “modo esponja” – alcunha que ganhou na academia pela sua sede de conhecimento – e absorve a informação, que depois aplica em João Sousa. Todos os detalhes contam, por mais insignificantes que pareçam. “Já falei com o Nadal sobre as rotinas dele, como aquela de tirar as cuecas do rabo, e ele explicou-me como tudo aquilo é importante”.
João Sousa não passou a adoptar o famoso gesto do ex-número um do mundo, mas há sinais que usa para comunicar com o treinador durante os jogos. E da bancada também recebe indicações dissimuladas, porque violam as regras do circuito profissional. É algo tão generalizado que os árbitros já sabem 'o que a casa gasta' e por vezes punem os infractores.
Em 2014, Frederico Marques e João Sousa foram apanhados em duas ocasiões e as multas atingiram os cinco mil euros, o que não é dissuasor. “O árbitro avisa e eu continuo porque se o João ganha o encontro são 60 mil de prémio”, assume o treinador, com a mesma boa disposição que exibe ao desvendar dois 'truques': “Se me inclino para a frente quer dizer para ele ser mais agressivo e mexer no chapéu indica para que lado ele deve servir. Mas aí tenho um problema. Quando tiro o chapéu, a KTM 'mata-me'. Eu ganho dinheiro com o patrocínio, mas eles não percebem que se tiro o chapéu ganho ainda mais porque o João joga melhor”.
Viajam 35 das 52 semanas do ano e nas restantes estão em Barcelona, onde João Sousa, nascido em Guimarães, também vive há uma década. Antes da relação de trabalho, já existia uma amizade sólida. Foi na Catalunha que se conheceram e durante um ano partilharam a mesma casa.
Frederico tinha sido número um português em sub-14, sub-16 e sub-18 e partiu aos 18 anos para tentar dar o salto com o jogador. A “mania de acordar às quatro ou cinco da manhã para ir correr” já vinha desde os 11 e deixava a mãe preocupada sempre que ela despertava a meio da noite e não o via em casa. Movia-o o desejo de ser campeão nacional e, uma vez concretizado, pensou que em Espanha poderia evoluir para uma dimensão mais profissional. Enganou-se: ao fim de três anos percebeu que “nunca ia chegar ao top-200 mundial”, nem viver do ténis como jogador. “Pensava que era muito bom e na verdade não era”.
Os pais gastavam entre 40 a 50 mil euros por ano para o manter na academia de Barcelona e pagar as outras despesas, renda de casa incluída. Duas semanas depois de ter sido aprovado para frequentar a escola de ténis de Francisco Roig, João Sousa, três anos mais novo, chegou com o mesmo propósito e depressa passaram a dividir os gastos. Frederico sentia-se “um menino da mamã”, mas ficou responsável pela lida da casa porque João ia para as aulas depois dos treinos. Recordam desses tempos um arroz de polvo que se assemelhava a “sola de sapato” e os levou para a casa-de-banho a noite inteira.
Ao fim de um ano mudaram-se para casas diferentes, mais próximas do centro de treinos. E enquanto João continuava a progredir, Frederico estagnou. Até se fartar. Com 21 anos, “angustiado” pela despesa que dava, informou os pais que ia parar por ali. Mas tinha outro desafio em mente: tornar-se treinador de ténis e, em simultâneo, declarar a sua independência económica.
“Precisava de deixar de viver à lorde e mostrar a mim próprio que conseguia sozinho. Rejeitei cartões de crédito e o carro e ofereci-me à academia como treinador. Cheguei lá e disse: 'Vocês pagam-me o que quiserem, só o suficiente para pagar a casa, e eu vou dar aulas a miúdos, a veteranos, o que quiserem”.
Propuseram-lhe 375 euros mensais e nem pestanejou. Não tinha cursos, não tinha experiência, não tinha nada. “Apenas me conheciam há três anos e sabiam que eu era simpático”. Foi viver com mais dois treinadores e passou a ser “o último a sair” da academia. Tanto “apanhava o lixo do chão” como as bolas perdidas nos vários campos de treinos. E tornou-se uma esponja.
“Puseram-me num grupo de miúdos pequenos e fiquei perdido, sem saber como os ensinar. Isso despertou-me uma ambição que nunca tive como jogador: começar do zero e querer saber tudo como treinador. Então, quando não tinha aulas, punha-me atrás dos outros treinadores a ouvir o que diziam”.
A aprendizagem não contemplou muitos cursos nem livros de ténis porque “não há muitos”. Mas Frederico passou a ir para a biblioteca ler sobre nutrição e preparação física, ao mesmo tempo que pesquisava exercícios no YouTube para ensinar. “Ainda hoje dou aulas a miúdos dessas idades e há malta que diz: 'Mas o que estás a fazer? Vai descansar. Viajas tanto e ainda estás aqui os pequenos?'. Mas eu aprendo com toda a gente e sei que em algum momento vou precisar de utilizar essa carta”.
A primeira experiência com graúdos não demorou. Alexander Lobkov, um russo que frequentava a academia, convidou-o para o ajudar em três torneios na Rússia. Na primeira noite, temeu o pior quando um “ruído enorme” o acordou “por volta das quatro da manhã”. Vinha do quarto de Lobkov. Bateu à porta e o russo “estava com duas mulheres”. Depois de ouvir um pedido de desculpas, o português foi dormir a pensar que ia passar “três semanas naquela loucura” e que voltaria a Barcelona com um fracasso nas mãos.
Conclusão precipitada. Lobkov chegou aos quartos-de-final no primeiro torneio e ganhou os dois seguintes. No regresso, o manager pediu à academia para Frederico se tornar treinador de Lobkov a tempo inteiro e num ano o russo subiu do lugar 1500 a 240 no ranking mundial.
O treinador passou a ter um contrato mais vantajoso e depressa começaram a surgir outros interessados em trabalhar com ele. Na época seguinte, ficou com o chinês Ma Yanan e a dar apoio à selecção chinesa durante a Taça Davis. Chegaram a acordá-lo de madrugada “para saber como ia ser o treino do dia seguinte”. Quando a ligação estava para terminar, por já ter na calha outro tenista russo, levaram-no à China para o aliciar para um contrato de dois anos. Foi jantar “a uma casa gigante, tipo mansão da playboy”, e havia “uns 60 empregados para 15 convidados”. Queriam impressioná-lo. Ofereceram-lhe casa, carro e outras mordomias, além de um salário que ainda hoje não aufere – mas a única coisa que aceitou receber e ainda guarda foi uma bebida. Tocar-lhe é que nunca mais.
“Aquilo é álcool puro e de cinco em cinco minutos eles levantavam-se: 'Brinde ao Fred. E mais um. E ao Fred. E ao Fred'. O tradutor dizia-me que eu tinha de beber, em sinal de respeito, e quando me foram levar ao hotel fiquei 20 minutos estendido no chão junto à porta principal, completamente bêbedo”.
Nem a boa vontade dos anfitriões nem o dinheiro convenceram Frederico a deixar a academia em Barcelona, onde tinha a segurança de ter sempre alguém para treinar.
Seguiu-se Vladislav Dubinsky, “um rapaz possuído pelo casino”. Numa deslocação ao Azerbaijão, gastou o dinheiro todo no póquer e ainda não tinham os bilhetes de avião para o torneio da semana seguinte. Implorou ao treinador para não contar ao pai, que já o tinha ameaçado tirar do ténis por causa do vício do jogo.
Frederico aceitou pagar do seu bolso a viagem, mas de comboio. “O menino estava habituado à sua comidinha e teve de passar 23 horas no meio de seis pessoas, sem comida, com um cheiro que nem se imagina. Havia cães, galinhas e às tantas ele só chorava. É claro que no dia a seguir perdeu”.
Foi então que surgiu João Sousa. Frederico teve de baixar o salário para a academia aceitar o acordo e João teve de convencer o pai de que o ex-companheiro de casa era a melhor solução. “Como eu tinha 24 anos, pensou que ia ser só festa. O João estava em 260 do mundo e era um momento importante na carreira”, comenta o técnico, que levou o vimaranense a 35.º do ranking mundial e acredita que esse não é o limite. “Se achasse que ele não poderia melhorar já não trabalhava com ele. Tenho uma ambição brutal e o João pode chegar ao top-25. São só dez lugares, parece pouco, mas é preciso o dobro dos pontos. Significa voltar a ganhar títulos, chegar a uns quartos-de-final de um Grand Slam e portanto já são coisas enormes”.
Como diz o lema que aparece em destaque na sua página de Facebook, 'se queres algo que nunca tiveste, tens de fazer algo que nunca fizeste'.
rui.antunes@sol.pt