Um mosaico multicultural

Sara Alhinho tinha 15 anos quando a mãe, a cantora Tété Alhinho, e Mário Lúcio, actual ministro da Cultura de Cabo Verde, abriram o Quintal da Música. Ao oferecer um palco para quem quisesse actuar, fossem profissionais ou amadores, o restaurante tornou-se rapidamente ponto de encontro obrigatório para a comunidade artística local, servindo de trampolim…

A iniciação musical aconteceu, porém, muito antes. Aos três anos de idade, Sara começou a trautear canções em casa e, aos oito, gravou um álbum para crianças com a mãe, intitulado Menino das Ilhas.

Essa experiência levou-a a participar algumas vezes no Festival dos Pequenos Cantores de Cabo Verde, obtendo várias vezes o segundo lugar. Algo que, em tenra idade, a perturbava. “Sentia-me sempre penalizada por ser filha de uma cantora. Muitas vezes pensava 'esta rapariga, só porque rebola, ganhou quando canta pior que eu'“. Mas a frustração não a impediu de continuar. Aos 12, criou com os irmãos os Meia Culpa, “o primeiro grupo juvenil cabo-verdiano”, e chamou para participar no projecto os filhos dos vários membros dos Simentera (banda, lá está, de Tété e Mário Lúcio).

A rebeldia própria da adolescência influenciou-a a querer novas experiências e, durante umas férias no México, terra natal do seu pai, decidiu “deixar a escola” em Cabo Verde e mudar-se para o país dos mariachis. “Nasci em Lisboa e, aos seis anos, vim viver para a Praia. Conhecia a cultura mexicana por aquilo que o meu pai me passava, mas queria aprender mais”, conta, sentada no terraço do Palácio da Cultura Ildo Lobo, durante uma pausa nas actividades da Atlantic Music Expo, evento com o qual Mário Lúcio quer tornar a cultura cabo-verdiana no motor da economia local.

A vivência mexicana durou dois anos, mas permitiu-lhe não só conhecer melhor a cultura do país, como gravar com o primo, produtor local, uma maquete de guitarra e voz com temas próprios. “Era um registo meio descomprometido, mas comecei a ter várias propostas, com editoras como a BMG e a Sony Music a mostrarem interesse em assinar comigo”. Ao contrário do que acontece com a maioria dos jovens que ambicionam fazer carreira na música, negou as propostas. “O mercado lá é muito agressivo e, na altura, o que estava muito na moda era a Shakira. Queriam que fizesse algo assumidamente pop e a minha natureza é guitarra e voz. Senti que se aceitasse estaria a corromper-me e decidi esperar, mesmo com toda a gente à minha volta a perguntar-me: 'Estás maluca? Vais perder esta oportunidade?'“.

O seu regresso a Cabo Verde coincidiu com “os melhores anos” do Quintal da Música. De repente, uma nova geração de músicos procurava criar um som próprio, mas intimamente ligado à tradição. Orlando Pantera (que morreu de forma precoce aos 33 anos, vítima de uma pancreatite aguda) era o expoente máximo dessa postura e Sara perdeu a conta ao número de vezes que o viu actuar no espaço cultural da Praia. Bem como o ícone Ildo Lobo, também já falecido. “Não havia discriminação. Tocávamos todos ali, com a velha guarda. Foi um encontro de gerações muito rico”. E que, além do Quintal, Sara e Tété alimentam em casa.

Uma década depois do trabalho conjunto Menino das Ilhas, mãe e filha gravaram outro álbum juntas, intitulado, nem mais, Gerassons. O trabalho permitiu-lhe viajar em digressão internacional com a mãe e, aos poucos, Sara começou a perceber qual podia ser o seu caminho na música. “Costumo dizer que sou um mosaico. Primeiro que tudo sou cabo-verdiana e, como qualquer crioulo, tenho um grande cruzamento genético. Depois, o facto de ter nascido em Portugal, ter crescido na Praia desde os seis anos e ter vivido no México influenciou a minha identidade cultural e fez-me ter muitas referências”. O primeiro álbum em nome próprio não podia, por isso, ter outro título.

Em Mosaico, Sara Alhinho, de 30 anos, expõe o seu percurso multicultural. Mas adverte: “Não é fusão! Não é um exercício de junção de peças. Quando se está exposto a tantas culturas diferentes e ricas, vai-se interiorizando tudo e o produto final é algo novo”. O disco – que valeu à cantora e compositora o prémio Artista Revelação nos Cabo Verde Music Awards 2014 e, no início de Abril, uma bolsa de Verão na prestigiada Berklee College of Music, nos Estados Unidos – conta então com canções em crioulo, em espanhol e até há um “'fado-morna'“, com guitarra portuguesa. A unir tudo isto está a doce voz de Sara Alhinho e uma identidade própria que quer vincar e mostrar ao mundo.

alexandra.ho@sol.pt