Dâmocles, um nobre da corte de Dionísio o Velho, Rei de Siracusa, cortesão que sonhava com as mordomias da realeza, foi um dia desafiado pelo próprio rei a desfrutar, num banquete sumptuoso, a sensação de ser o senhor soberano. Eufórico sentou-se, por uma noite, no trono real, mas só no final da festa verificou que sobre a sua cabeça tinha estado sempre uma ameaçadora espada afiada, presa por uma ténue crina de cavalo. Esta parábola da ameaça constante está instalada há séculos e é assustadora.
Se em relação aos abusos do poder temer uma possível e fatal queda da espada de Dâmocles pode ser uma virtude, em relação a muitas outras situações uma tal ameaça permanente, longe de ser virtuosa, pode ser e é um castigo injusto e inconsequente, muitas vezes deixado no ar por razões que até a Justiça desconhece e que transformam uma prática positiva e necessária numa viciosa, gratuita e inconsequente manifestação de qualquer coisa que está longe de ser o que supostamente devia ser.
Como sempre digo, um programa como o dos chamados vistos gold – decalcado de muitos outros programas europeus que também oferecem autorizações de residência a investidores estrangeiros – deve ser irrepreensivelmente transparente, tem de ser inteligentemente dado a conhecer e pode, no caso português, beneficiar bastante pela via das chamadas discriminações positivas, mas também pelo alargamento ao mecenato cultural e científico, como aliás foi já aprovado.
Mas tudo isto fica irremediavelmente comprometido se estivermos condenados à permanente e prejudicial publicidade das suspeições que existirão em torno da existência de supostas redes com altas figuras do Estado, ou não, que usariam o programa das Autorizações de Residência para Actividades de Investimento (ARI), vulgo vistos gold, para obtenção de luvas. Essa publicidade de suspeitas alimenta periodicamente as nossas desconfianças, nomeadamente no mercado imobiliário, como uma verdadeira Espada de Dâmocles.
Tão grave como os ilícitos e como os crimes que possam ter ocorrido à sombra do programa ARI é – repito – a suspeição generalizada que tais comportamentos lançam sobre esta prática de captar investimento estrangeiro, prática legal, legítima e comum no quadro das economias que vivem no mundo globalizado e que não merece estar envolvida em suspeitas nada claras. Daí que não possamos nunca perder de vista a ideia de que a incontornável necessidade de Justiça é incompatível com esta tão pouco transparente ameaça que as suspeitas lançadas ao vento lançam de forma mais fatal do que a própria Espada de Dâmocles.
*Presidente APEMIP, escreve esta coluna semanalmente