Imagino que não faltará muita gente a sorrir da minha ingenuidade neste terreno inevitavelmente escorregadio e tantas vezes sombrio da política. Dir-se-á: sempre foi assim e sempre será assim, conforme aprendemos a partir das mais antigas lições da História. Por outro lado, os escrúpulos morais terão sido também apanágio de ditadores com reputação de seriedade e incorruptibilidade pessoal – de que o exemplo doméstico mais conhecido é o de Salazar. Só que esses supostos escrúpulos, quando existiam, eram sempre acompanhados por uma monstruosa hipocrisia.
Precisamente, é essa hipocrisia que caracteriza hoje os populismos que fazem do combate à corrupção a bandeira quase exclusiva dos seus anátemas contra uma classe política considerada em adiantado estado de decomposição. E um risco que corrói as democracias modernas é o de vermos um número crescente de eleitores seduzidos por inflamados discursos antipolíticos e anti-sistema sob o conhecido lema 'estão todos podres'.
Enfrentar esse perigo implica, portanto, um esforço consequente de separação das águas. As questões de carácter são um dos pontos centrais da dignificação da actividade política e do renascimento da confiança nas instituições democráticas.
Vem isto a propósito do clima criado pelo lançamento de uma biografia propagandística do actual primeiro-ministro e que tem suscitado numerosos comentários.
Desde logo, a triste moda de lançar biografias 'autorizadas' e coincidentes com períodos eleitorais representa uma desqualificação de um género nobre, cultivado infelizmente em Portugal por um escasso número de autores (recordo as biografias escritas pelo jornalista Joaquim Vieira, pela sua isenção, independência e qualidade de escrita).
Mas, por involuntária ironia, esta biografia tem servido sobretudo para ilustrar aquilo que não deveria ser novidade para ninguém: a muito escassa estima – e é dizer pouco – que Passos Coelho nutre pelo seu principal colega de coligação, Paulo Portas. As inconfidências sobre a crise governativa que conduziu à “irrevogável” demissão de Portas e a marcha-atrás seguinte, com a sua promoção a vice-primeiro-ministro, mostram o sólido cimento de convicções e coerência política em que assenta a coligação… Não faltaram sequer as versões venenosas e anedóticas sobre a forma escolhida por Portas para tentar despedir-se: SMS ou carta formal?
Ainda para mais, por azares de timing, o livro saiu depois da confirmação da nova aliança PSD-CDS, precipitada pelo anúncio do cenário macroeconómico divulgado pelo PS. O desconforto sentido pelo CDS e respectivo líder foi evidente, mas logo metido entre parêntesis por razões maiores: os interesses (finalmente convergentes) de apego ao poder.
A biografia incensa Passos Coelho como líder político e homem irrepreensível, não se coibindo de explorar aspectos sensíveis da sua vida familiar como a doença da mulher (e que ele pedira noutra ocasião, como era seu legítimo direito, para manter na esfera privada). Passos é um anjo branco, com uma vocação de salvador da pátria dos desmandos governativos anteriores e isento de qualquer sombra no currículo político ou profissional (como as relações com Miguel Relvas, Ângelo Correia ou a Tecnoforma, por exemplo).
Mas todo este zelo hagiográfico não resiste, como se viu, a contradições flagrantes, omitindo sempre as opiniões contrárias às políticas prosseguidas pelo actual Governo. Passos não tem estados de alma, nada do que fez lhe trouxe dramas ou conflitos interiores, abençoado pela sua iluminação providencial para resgatar o país. Foi assim, mesmo quando se viu obrigado a trair as promessas eleitorais e tornar-se o 'bom aluno' da troika – propondo-se, aliás, ir além dela.
Passos dá de si próprio uma imagem de predestinação cega, vazio político e vacuidade intelectual, a que falta, naturalmente, espessura de carácter. Não foi acidental, por isso, o elogio que fez recentemente à carreira de Dias Loureiro, alguém que encarnou um dos mais descarados conflitos de interesses entre a política e os negócios. Tal como não é fortuito o traço de união entre Passos e Portas, dois homens que mutuamente se desprezam (odeiam?) mas que, pelos vistos, não podem prescindir um do outro. Quando não há carácter, resta o cinismo do poder.