Salvaterra: Um crime ainda por explicar

PJ suspeita que há mais pessoas envolvidas na morte de Filipe, em Salvaterra de Magos. O presumível homicida viveu desde os 11 anos entre crimes e instituições. As suas vidas cruzaram-se há meses, em circunstâncias por apurar.

Há dois anos, em Março de 2013, a mãe de Filipe era chamada à comissão de menores de Salvaterra porque o filho,  na época com 12 anos, andava a faltar às aulas. A 70 quilómetros de distância, em Lisboa, Daniel, então com 15 anos, cumpria pena numcentro educativo por roubos e tráfico de droga, depois de uma vida de delinquência e institucionalizações que começou aos 11. Com o aviso, Filipe acalmou e retomou uma vida aparentemente normal.  Já Daniel saiu em liberdade, regressou a Salvaterra e quase de imediato reentrou no mundo do crime. No passado dia 11, Filipe, de 14 anos, foi brutalmente assassinado por Daniel, de 17, de quem se tinha tornado amigo há meses.

A autópsia confirmou que o adolescente morreu devido a uma pancada na cabeça com uma barra de ferro e afastou motivos sexuais. Daniel confessou o crime à Polícia Judiciária (mas não depois ao juiz de instrução) e está em prisão preventiva. A Polícia suspeita que, além da vítima e do  agressor, possam ter estado mais pessoas no local do crime, pois o corpo apareceu na arrecadação de um prédio, no 5.º andar, quando tudo indica que o adolescente foi morto num apartamento desabitado do 4.º piso.

Os percursos de Daniel e Filipe cruzaram-se há uns meses, em circunstâncias que a PJ investiga. Segundo apurou oSOL, Filipe terá começado a andar com o grupo de Daniel, constituído por jovens mais velhos e já referenciados pelas autoridades por roubo e tráfico de droga.

Mas estas novas relações seriam desconhecidas para a família. A mãe de Filipe, Rita Costa, garante que não eram amigos, apesar de se conhecerem. Cruzavam-se no café de Susana, mãe de Daniel, que fica no mesmo prédio onde Filipe morava com a avó: é o único estabelecimento em Salvaterra de Magos com salão de jogos e onde  um e outro costumavam ir jogar setas. «Mas nunca se sentavam  à mesma mesa», diz a mãe de Filipe.

Em Salvaterra, Filipe Costa Diogo destacava-se. Com 14 anos feitos em Janeiro, já tinha um metro e 76 centímetros. Vestia roupa de marca, ténis caros e trazia no bolso um telemóvel de 600 euros.

A família não tinha problemas de dinheiro. O pai, que foi para o estrangeiro há sete anos, trabalha agora numa petrolífera na Nigéria. A mãe não tem emprego e mora na zona de Salvaterra com a filha Maria, a irmã mais nova de Filipe.

O adolescente vivia no centro da vila, mas  em casa da avó materna, a quem tinha sido entregue a sua tutela.  Sempre que podia ia passear com a irmã pelo bairro.

As raparigas gostavam dele: a mãe diz que tinha três namoradas  na secundária de Salvaterra, onde  frequentava o 6.º ano. Era popular e os colegas de turma têm estado a receber acompanhamento psicológico. Enterraram o amigo na véspera de fazerem o exame nacional de Português, na terça-feira. Nenhum faltou.

Nos últimos tempos  notaram que Filipe se andava a afastar. Ultimamente, não queria sair com eles em grupo da escola como fazia anteriormente: «Acho que lhes dizia para irem andando», conta Rita Costa.

Filipe já tinha chumbado duas vezes, mas as faltas às aulas que deram origem ao processo na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) foram resolvidas e o processo arquivado há um ano.

Actualmente, era considerado na escola um «miúdo perfeitamente normal», descreve a directora do Agrupamento de Escolas de Salvaterra, Manuela Esménio. A psicóloga tem investido na turma, insistindo que os 20 alunos  expressem por escrito ou através de desenhos os seus sentimentos.

Vaidoso, Filipe mudava várias vezes de roupa por dia. Tirava selfies ao espelho do quarto, que publicava no Facebook. Mas também era generoso com os amigos que não tinham o seu nível de vida: emprestava-lhes roupa e ténis. E quando saía à noite para ir ao karaoke de um amigo, pedia  sempre dinheiro à mãe para pagar Coca-Colas. Vivia na vila há três anos: antes, estudara no colégio interno Andrade Corvo, em Torres Novas, onde a mãe e o tio também tinham andado. Esteve ali dois anos, um dos quais em casa de uma das funcionárias da escola.

Fugas e crimes

Bem diferente é a história de Daniel. Vivia praticamente em auto-gestão desde os 11 anos, cometendo pequenos crimes e entrando e saindo de instituições do Estado, sem que a família conseguisse ter mão nele.

Os técnicos que acompanharam o seu percurso dizem que a morte do pai e da avó paterna foram episódios marcantes da sua personalidade. Daniel tinha 10 anos e vivia em Samora Correia quando  o pai, José Manuel, morreu subitamente à sua frente. No acórdão do Tribunal de Vila Franca de Xira, de Fevereiro de 2014 – em que Daniel foi condenado por furto –, a juíza sublinha que foi nessa altura que entrou num processo de «desorganização afectiva, com manifestas dificuldades no processo de luto».

Passou a faltar à escola, a cometer pequenos roubos e a recusar ir às consultas de pedopsiquiatria. Era conhecido da Polícia e da  CPCJ de Benavente desde 2008, quando aí teve o primeiro processo, aos 11 anos.Foi a mãe que lhes pediu ajuda por não conseguir controlar o filho.

Mais tarde, aos 13 anos, já a família se mudara para Salvaterra, o tribunal mandou-o para o Lar de Infância e Juventude da Arca da Aliança, em Fátima. Ficou a estudar no colégio de S. Miguel.

Fugia, portava-se mal, não obedecia aos superiores e chegou a praticar crimes enquanto aí viveu. Regressou a casa emAbril de 2012, para junto dos dois irmãos,  porque a mãe já tinha uma nova família. Foi inscrito na Escola Secundária de Salvaterra de Magos. Mas nada mudou: voltou a faltar à escola e a cometer crimes. «A mãe deixou de investir nele, tinha outros filhos para cuidar. Desistiu», diz fonte ligada ao processo de promoção e protecção.

Daniel só esteve sete meses em casa: foi então condenado por furto qualificado e tráfico de droga e cumpriu a medida de internamento em Benfica, no Centro Educativo Navarro de Paiva, onde esteve 18 meses em regime semi-aberto. Não era violento, esforçava-se por cumprir as regras, e até tirou um curso de computadores. Mas segundo fontes contactadas pelo SOL era manipulador e tinha uma cabeça perigosa, que estava sempre a orquestrar manobras para envolver outros em problemas.

A inteligência de Daniel é sublinhada pelo director do Escola de Formação Profissional de Salvaterra, onde se inscreveu no curso de Electrónica, no início deste ano lectivo. «Só veio dois meses e sempre que era confrontado com as faltas dizia que ia corrigir-se. Era esperto e bem falante», diz Rogério Mesquita. Em Dezembro passado, deixou simplesmente de aparecer.

Em Fevereiro de 2014, foi condenado por ter destruído, em 2012, o interior de uma casa em construção, em Samora Correia, juntamente com um primo e um amigo.  «Rebentaram tudo e roubaram ferramentas e uma colecção de moedas para venderem», conta João Marques, proprietário da casa vandalizada, recordando que Daniel passou o julgamento a rir-se.

Nas redes sociais, Daniel tem sido insultado e ameaçado, mas o os amigos defendem-no. Ao SOL,  duas colegas  que costumavam sair com ele à noite dizem que é  « uma pessoa cinco estrelas». E acreditam que há mais pessoas envolvidas na morte de Filipe.