Não, não se tratava de confrontos de índole racial, de explosões de revolta contra o homicídio de negros pela Polícia como os que incendiaram recentemente aquelas duas cidades americanas. Mas, apesar das consequências felizmente mais brandas dos incidentes, as imagens colhidas na área do Marquês de Pombal tornaram inevitável a comparação com o que estamos habituados a ver noutras latitudes onde se banalizaram as guerrilhas de rua entre populares e forças policiais. E tudo aconteceu por causa do que deveria ter sido uma festa pacífica de vitória num campeonato de futebol.
Curiosamente, depois dos comentários feitos em cima dos acontecimentos – e de outros difundidos, mais tarde, sobretudo através dos media audiovisuais -, a surpresa parece ter paralisado a capacidade da imprensa em narrar e reflectir acerca do que acabara de suceder.
Um exemplo significativo: o Público de terça-feira – o dia a seguir aos incidentes – colocava os distúrbios no Marquês quase como uma nota de rodapé da reportagem sobre a agressão brutal de um subcomissário de Guimarães a um adepto benfiquista acompanhado por dois filhos menores e o respectivo avô. Era essa agressão, aliás, a única e discreta referência na primeira página do jornal, escamoteando o pandemónio sem precedentes verificado no centro de Lisboa.
De forma quase pavloviana, o essencial das informações e das reflexões – recordo uma crónica de Rui Tavares, dirigente do Livre, também nas páginas do Público – incidiram sobre as lições a extrair do comportamento daquele responsável policial e os abusos, efectivos ou potenciais, das forças da Polícia em geral.
O ambiente das ruas de Lisboa e os confrontos dos adeptos com a Polícia, ao longo de horas, tinham passado para plano muito secundário, porventura ultrapassados por um episódio – de inqualificável vandalismo, note-se – em que adeptos benfiquistas eram filmados a saquear instalações do estádio do Guimarães.
Há quem atribua a origem dos motins lisboetas à projecção em ecrãs gigantes no Marquês das imagens da selvática agressão policial contra o adepto benfiquista em Guimarães. Mas é preciso também ter em conta que a direcção do Benfica e a Câmara de Lisboa menosprezaram um relatório da PSP alertando para a insegurança do dispositivo montado no centro da praça e, sobretudo, para a venda de álcool em garrafas de vidro – que se tornaram, mais tarde, uma das armas de arremesso usadas pelos arruaceiros contra a Polícia.
Confrontado com os factos, o actual presidente da Câmara insistiu, de modo visivelmente embaraçado, em recusar o irrecusável, relativizando os incidentes com aquilo que se passa noutros locais do mundo em circunstâncias idênticas. Não soube assumir a sua manifesta imprudência, talvez porque a capacidade de persuasão política dos grandes clubes de futebol – e muito concretamente do Benfica – se impõe à necessária lucidez da prevenção.
Uma ilação idêntica pode extrair-se da forma tíbia como a ministra da Administração Interna reagiu aos acontecimentos de Guimarães, alegando recusar julgamentos na praça pública. Dela não ouvimos lamen- tos nem desculpas – ou vimos o gesto adequado de suspensão prévia do subcomissário agressor, enquanto decorressem inquéritos e averiguações. Recorde-se que até um responsável sindical da polícia admitiu publicamente a natureza desproporcionada da actuação do agente, ao utilizar um bastão de aço contra um homem manifestamente desarmado.
Um presidente da maior Câmara portuguesa e uma ministra das polícias que se demitem das suas responsabilidades políticas em matérias tão sensíveis de ordem pública, enquanto os responsáveis político-partidários permaneciam sem reagir: eis um sinal preocupante das condições que podem incendiar um clima social ultra-sensível.
As imagens do Marquês de Pombal não reflectem apenas uma atmosfera de alienação, alimentada efusivamente pelas televisões onde se sucedem intermináveis programas futebolísticos como tema dominante. Essas imagens reflectem também a raiva recalcada numa sociedade disfuncional, onde o desemprego e a marginalidade estimulam cada vez mais os riscos de explosão.
Riscos que tenderão a agravar-se enquanto recusamos abrir os olhos para a realidade. Não é uma desculpa simplista para o que aconteceu, mas um aviso sobre o barril de pólvora onde apaticamente nos sentamos.
Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 22/05/2015