Hooligans e identidade

Em  Junho de 2000, durante o Campeonato Europeu de Futebol, perto de quatrocentos ingleses foram escoltados para fora da Bélgica na sequência de acções de extrema violência, tendo a UEFA chegado a ameaçar excluir a Inglaterra da competição caso o hooliganismo dos adeptos ingleses não fosse travado.  

Por coincidência, eu jantava num restaurante próximo da Grand Place de Bruxelas quando oss irromperam, partindo montras com bastões, atirando cadeiras ao ar, lançando petardos e chegando mesmo a disparar tiros. 

Felizmente aquele restaurante tinha uma cortina de ferro, que baixou, e ficámos encurralados, a ouvir a destruição da horda, até perto das duas da madrugada. Houve feridos e enormes prejuízos. Noite de guerra numa cidade do centro da Europa. Desacatos de menor monta sucederam também, noutros dias, com hooligans italianos, belgas e alemães. 

A memória das pessoas é curta e, quando as emoções começam a borbulhar, surge essa outra forma de violência que é o preconceito, em todo o seu esplendor. 

Assim, ao longo desta semana e das intermináveis horas de análise televisiva aos acontecimentos pouco edificantes que arruinaram a noite da vitória benfiquista, ouvi a vários comentadores expressões como «parece que estamos no Terceiro Mundo», «parecia que estávamos em África ou na América do Sul». 

Como se na douta Europa não se praticassem selvajarias: busca-se logo o ferrete do bruto ignaro nesses lugares de pobres e ex-colonizados. E a nenhum moderador ou jornalista ocorreu sequer travar esses insultos por atacado a africanos e sul-americanos. 

Continua, aliás, em vigor a prática 'jornalística' de destacar a nacionalidade ou mesmo a cor da pele de um hipotético prevaricador, desde que não seja português – ah, os romenos, os cabo-verdianos, os brasileiros ou africanos. Como quem diz: cuidado com eles, que não são civilizados como nós.  

Ainda bem que contamos hoje com o testemunho das imagens que documentam actos de prepotência e permitem o apuramento de responsabilidades. 

Espero que os filmes da brutal delapidação do estádio do Vitória de Guimarães se mostrem eficazes – o Benfica dispôs-se imediatamente a pagar tudo, mas seria útil que os ladrões e destruidores fossem identificados, processados e, evidentemente, expulsos do clube. 

Questão de exemplo e prevenção: se as acções não tiverem consequências, os estádios de futebol arriscam-se a ficar vazios. Quem vai levar a família a um jogo sabendo que pode acabar espancado diante dos próprios filhos menores?  

Entretanto, pergunto: por que razão a vitória num campeonato – qualquer que ele seja e qualquer que seja o clube vencedor – se celebra no centro da cidade? Há anos que faço esta pergunta, e até hoje não consegui resposta. 

Em caso de vitória da Selecção Nacional, justifica-se que a capital se renda ao futebol. Mas a vitória de um clube deve ser celebrada no estádio respectivo, por todas as razões, a começar pela muito maior facilidade na contenção de eventuais agressores. 

Mesmo sem pedras arrancadas dos passeios, caixotes incendiados, vidros partidos, quem paga a limpeza do centro de Lisboa, as muitas centenas de garrafas e os muitos quilos de lixo que necessariamente invadem as ruas, numa festa destas? E as leis sobre ruído urbano não se aplicam aos adeptos do futebol? Agradecia uma explicação.

inespedrosa.sol@gmail.com