O sopro de liberdade de Eneida Marta

Pode soar a cliché, mas é muito fácil acreditar nas genuínas intenções de Eneida Marta quando nos diz que a música é só um veículo para ajudar os outros. Antes de desvendar a ambição, a cantora guineense já tinha dado outras pistas deste seu propósito ao contar que compõe, mas prefere cantar temas de outros…

Eneida estava em Bissau – onde passa agora maior parte do seu tempo apesar de se ter feito gente em Lisboa, para onde se mudou com a mãe há 25 anos, em plena adolescência – quando ao passear na rua ouviu um sopro que a cativou. Abordou o culpado por aquele momento de encanto, fez perguntas, inteirou-se sobre a sua vivência musical. A conversa terminou com um convite ao flautista para participar no disco que a cantora preparava, sucessor do aclamado Lôpo Kaï (2006). 

Desta experiência só ficou a faixa que abre Nha Sunhu, 'Intro', porque retirada do seu habitat natural – as ruas de Bissau – a pureza do instrumentista perdeu-se. As dificuldades que o amador sentiu em estúdio atraiçoaram-no e, mais tarde, o congolês Dramane Dembelé regravou as partes de flauta. 

Mesmo falhada, a tentativa acabou por activar a memória da cantora e os flashbacks recordaram-na de como também era “muito ingénua”. “Sabia que tinha voz, porque fui seleccionada para Cantigas da Rua e Operação Triunfo, mas fazia tudo por instinto, não sabia projectar a voz. Mesmo assim dizia que ia ser uma cantora muito famosa e as minhas colegas só me gozavam: 'Ai sim? Aqui a montar telemóveis?'“. 

A escola como corista 

Como é “uma atrevida”, deixou de juntar partes de aparelhos móveis, mesmo que a tarefa garantisse o rendimento ao final do mês, mandou os filhos ir viver com a avó no Reino Unido e começou a fazer coros para nomes grandes como Bonga. Assim, foi ganhando treino vocal. “Ser corista é muito mais difícil do que solista. No coro há limites, há dinâmicas obrigatórias que tens de respeitar”.

Hoje apercebe-se melhor da “grande escola” que teve como corista quando revisita o disco de estreia (Nô Storia, 2001) e ouve “a voz pequenina” que tinha na altura. Em Nha Sunhu, a par da evolução que alcançou nestes 14 anos que dedica à música, manteve o atrevimento que marcou o arranque da sua carreira. Mas com algum suor à mistura. 

Ao fim de nove anos sem gravar, Eneida deixou para trás os receios e assumiu a produção do disco. As dúvidas regressaram perante a ausência de soluções, mas a iluminação acabou por chegar no dia em que começou a dirigir outros. “Parecia tomada por um espírito qualquer. Sabia o que queria de cada um e tinha imensas ideias”. 

Talvez tenha ajudado ter os pés bem assentes no chão (e o que Eneida gosta de andar descalça, principalmente em palco, onde tira os sapatos e se senta “com os pés em cima do sofá”): “Não ambicionei ter arranjos fantásticos ou complexos. Disse para mim mesma: 'Só vou fazer aquilo que sei. Nada mais'“. Aquilo que sabe está espelhado na voz quente e no sorriso igualmente caloroso que exibe quando canta e fala da Guiné, o mote de todos os seus discos. “É um país de uma riqueza humana e cultural incrível. Lá sinto-me livre e quero passar essa sensação nas minhas canções”. 

É com esse desassombro que Eneida Marta vai mostrar-se ao vivo, na Casa da Música (hoje), no Porto, e na Culturgest (sexta, 29), em Lisboa. Depois, regressa à Guiné-Bissau para mais uma iniciativa como embaixadora da Unicef: lançar a campanha contra o casamento infantil no país. 

alexandra.ho@sol.pt