Varoufakis entra no Matrix

Yanis Varoufakis pensa que a humanidade está na bilheteira de um cinema e que tem de decidir sobre a que filme assistir. De um lado, o Star Trek, em que os humanos podem dar azo à sua diletância, exploram o espaço de manhã, têm conversas filosóficas à tarde e durante todo o dia recebem os…

A alternativa é o Matrix: depois de esgotarem as fontes de energia naturais do planeta e entrarem em guerra, os humanos são escravizados por robôs que ganham inteligência e acham que os homo sapiens são um vírus que está a acabar com a Terra.

É com estas duas analogias cinematográficas que o actual ministro das Finanças grego desconstrói parte do funcionamento da economia, num livro que escreveu para a filha – e para todos os que não dominam aquela ciência e pensam que os discursos de Mario Draghi no Banco Central Europeu são feitos em chinês.

Escrito em dez dias, antes de o grego se tornar o ministro-estrela do Governo de Alexis Tsipras, o livro Quando a desigualdade põe em risco o futuro – Conversas com a minha filha sobre economia foi redigido há um ano. Está agora a ser editado na versão em português pela Planeta.

Varoufakis assume-se como um “marxista errático” e não é por acaso que as alusões ao filósofo alemão são constantes. Mas, para simplificar o que é complexo, os filmes e as imagens populares ajudam, criando uma versão pop do conflito entre os detentores do capital e o proletariado que vende a sua própria mão-de-obra.

“Idealmente, a nossa capacidade de inventar e produzir escravos mecânicos devia aproximar-nos de uma sociedade do tipo Star Trek. […] No entanto, enquanto as máquinas pertencem a um número reduzido de privilegiados que as utilizam para obter lucros, ao passo que a maioria cobra apenas pelo seu trabalho, então as máquinas acabam por ser os chefes de todos e daqueles que trabalham ao lado delas”, escreve o economista grego.

A sociedade pode aspirar a ser como no filme Star Trek – há intensos debates na internet sobre se este filme representa uma sociedade comunista. Mas, para o grego, o risco de caminharmos para o cenário do Matrix é elevado. Varoufakis veste cabedal preto e anda de mota, dois adereços do filme dos irmãos Wachowski, mas a ligação ao filme não é apenas uma questão de estilo. É de substância. A película chega a ser classificada como um “documentário” sobre o capitalismo. “A mecanização das sociedades de mercado aproxima-nos de Matrix. […] Gerações inteiras são sacrificadas em honra das crises com que a sociedade de mercado reage bruscamente ao triunfo das máquinas”, lê-se no livro.

No início era o verbo. E cereais

A publicação começa com a explicação histórica sobre o surgimento da economia e dos mercados. Segundo Varoufakis, foi a combinação da linguagem e do excesso de produção de alimentos na revolução agrícola que permitiu ao homem desenvolver um sistema de trocas. A primeira forma de escrita surgiu na Mesopotâmia para registar a quantidade de cereais que os agricultores tinham num celeiro comunitário. Durante séculos, o sistema funcionou, mas a mercantilização da mão-de-obra e a procura incessante de lucros interromperam essa harmonia.

E coube aos banqueiros agilizar a mudança para a versão mais destrutiva do capitalismo. Varoufakis deixa palavras pouco simpáticas ao sistema financeiro pela forma como cria dinheiro a partir do nada, gerando dívida excessiva. “Trata-se de verdadeira magia. Infelizmente, como em qualquer conto de magos, não tarda a entrar em cena a temível magia negra. No meu conto, o papel dos magos malvados está reservado aos banqueiros”. Quando o banqueiro “vai longe de mais”, causando o sobreendividamento com crédito que as pessoas e as empresas não conseguem pagar, acontece um “crack”. A bancarrota.

O livro foi escrito como se estivesse dirigido à filha, que vive na Austrália, onde o ministro das Finanças grego viveu e deu aulas. Varoufakis é um economista conceituado, especializado na teoria dos jogos, um ramo que analisa as decisões dos agentes económicos.

E para explicar como poderia ser contrariado o tão temido Matrix, defende um maior controlo democrático das instituições e mais cooperação entre seres humanos, recorrendo a uma imagem que muitos alunos de economia conhecem das salas de aula: um grupo de caçadores tem mais vantagem em caçar em conjunto um veado que alimenta toda a aldeia do que cada um caçar individualmente uma lebre.

joao.madeira@sol.pt