Referendo a Erdogan

É a primeira vez desde 2002 que Recep Tayyip Erdogan não estará no boletim de voto das legislativas turcas. Mas nem por isso o agora Presidente deixa de ser a figura principal da votação deste domingo, que se adivinha decisiva para o futuro do sistema democrático do país.

Erdogan não pede apenas mais uma vitória para o seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), islâmico e conservador, liderado pelo primeiro-ministro Ahmet Davutoglu. O objectivo é a eleição de 330 dos 550 deputados, uma maioria de três quintos que permitirá a reforma constitucional com que Erdogan pretende estabelecer um sistema presidencial.

A marcha foi iniciada em Agosto do ano passado, quando Erdogan decidiu abdicar da chefia do Governo para se candidatar ao cargo maioritariamente cerimonial de Presidente. A vitória, à primeira volta, confirmou que mantinha intacta uma popularidade que lhe rendera três maiorias absolutas desde a fundação do partido em 2001.

Seguiu-se a promessa de uma «nova Turquia», com uma nova «forma de governo democrático» que produza uma «administração mais eficiente». E, sem fugir à polémica que o caracteriza, Erdogan ignora o protocolo e faz campanha pelo seu plano. «A Itália aprovou recentemente uma lei que proíbe as coligações. Todo o mundo quer aumentar a estabilidade enquanto a nossa oposição propõe coligações. Todo o mundo adopta o sistema presidencial para dar estabilidade e eles continuam a falar de um sistema parlamentar», disse há semanas durante uma inauguração.

Não espanta porém que os temas fortes da campanha andem todos à volta da sua figura: seja a ilegalidade que marcou a construção do novo palácio presidencial, confirmada em tribunal, ou as acusações da oposição sobre o luxo que compõe a nova residência de Erdogan – o Presidente afirmou esta semana que se demitirá se alguém encontrar sanitas de ouro no palácio. 

Erdogan enfrenta outros desafios: após uma década de crescimento económico, o país está há três anos num ciclo de estagnação e de aumento do desemprego; as maiorias do AKP têm vindo a perder força, dos 363 deputados eleitos em 2002 para os 327 de 2011; e esta eleição está a ser marcada pelo crescimento do Partido Popular Democrático (HDP), formação curda que se propõe chegar pela primeira vez aos 10% do voto nacional, obrigatórios para garantir representação parlamentar.

Conversa de curdo

Selahattin Demitras, o líder do HDP, diz que Erdogan se prepara para «usar o poder contra o povo» e promete fazer tudo para impedir a reforma constitucional ambicionada, mesmo que o AKP acene com poderes autónomos à comunidade curda, prometa avançar com o processo de paz com o Partido dos Trabalhadores (PKK) ao ponto de se especular sobre a libertação do líder histórico do partido, Abdullah Ocalan, preso desde 1999. 

Mais do que o resultado do AKP, é o sucesso do HDP que ditará vencedores e vencidos hoje: mesmo que consiga eleger dezenas de deputados nas regiões curdas, estes só tomarão posse caso o partido chegue aos 10% em todo o país. Caso contrário, esses deputados passarão para o segundo maior partido nas regiões vencidas pelo HDP. E com forte base de apoio entre os curdos mais conservadores, seria o AKP a receber esses representantes. Será essa a diferença entre mais uma simples maioria absoluta ou a eleição de três quintos de deputados que permitirão a realização do plano de Erdogan. 

nuno.e.lima@sol.pt