2. É o primeiro preso preventivo em Portugal que o faz – mais um marco histórico de José Sócrates. O objectivo principal de Sócrates é, desta forma, garantido: o seu nome vai entrar na história da justiça e do sistema prisional português. José Sócrates é, sem dúvida, um coleccionador fanático e competente de marcos históricos.
3. Perguntará o leitor: mas a recusa de utilização da pulseira electrónica é uma decisão estranha? Em abstracto, a decisão de recusa é estranha; em concreto, ou seja, tomando em consideração o personagem José Sócrates, a recusa de utilizar pulseira electrónica é perfeitamente normal. Expectável – não constitui qualquer novidade ou tão pouco surpresa. Vamos por partes.
4. Juridicamente, os portugueses já se tornaram especialistas em Direito Processual Penal: a obrigação de permanência em habitação é outra das medidas coactivas previstas na nossa legislação, menos privativa da liberdade que a prisão preventiva. Desse ponto de vista, a obrigação de permanência em habitação é menos grave que a prisão preventiva. A obrigação de permanência em habitação comporta a utilização de pulseira electrónica, mas não só: pode, designadamente, consistir na vigilância policial à habitação de José Sócrates, controlando as suas movimentações. Há, ainda, como alguns juristas explicam em vários jornais de hoje, medidas ainda menos gravosas, como a obrigação de se apresentar periodicamente às autoridades – julgo, no entanto, que esta última está excluída das ponderações do juiz Carlos Alexandre.
5. Convém fazer duas precisões: primeiro, a mudança da medida coactiva, juridicamente, não significa qualquer dúvida ou mudança de opinião do Ministério Público sobre a culpabilidade de José Sócrates. O Ministério Público pode hoje estar ainda mais convencido de que José Sócrates cometeu os crimes de que é indiciado – e, não obstante, propor a medida (utilizemos a expressão mais comum entre os leigos) de prisão domiciliária. Confuso? Não. É que uma coisa é o juízo de culpabilidade que os procuradores do Ministério Público, entidade que dirige a investigação criminal, formam quanto aos indícios que estão a recolher – se sim ou não, José Sócrates praticou actos que consubstanciam a prática de tipos criminais.
6. E, se o Ministério Público, entender que tem matéria suficiente para demonstrar que a autoria dos crimes deve ser imputada a José Sócrates, então, no momento adequado e segundo a lei, deduzirá acusação. Outra coisa – muitíssimo diferente – é o juízo que o Ministério Público faz sobre a adequação e a proporcionalidade da aplicação da medida coactiva que corresponde à prisão preventiva neste estádio do processo.
7. É que o Ministério Público (e sobretudo o Juiz de Instrução Criminal, neste caso, o Juiz Carlos Alexandre) pode entender que, por exemplo, já reuniu prova suficiente e que agora que tem que estudar os factos e articulá-los com o direito nestes dois meses que faltam para deduzir acusação; ou então o Ministério Público entende que os dados mais sensíveis e comprometedores para José Sócrates já estão salvaguardados, pelo que José Sócrates já não os poderá destruir ou dificultar a investigação. E tendo em conta que já ouviu os restantes suspeitos – e que estes também já se encontram em casa, é lógico que o Ministério Público proponha a prisão domiciliária em vez de prisão preventiva para Sócrates.
8. Em segundo lugar, note-se que a lei impõe apenas o consentimento do arguido para a utilização de pulseira electrónica – não para a aplicação da medida coactiva. Essa decisão integra a reserva de juiz: o juiz de instrução criminal irá decidir e a medida erá executada. Como Sócrates se recusa utilizar a pulseira, então, o juiz terá de aplicar uma outra forma de assegurar o cumprimento por parte do arguido da obrigação de permanecer na sua habitação. Teoricamente, segundo a lei, José Sócrates deveria ter sido ouvido hoje – o juiz Carlos Alexandre, no entanto, dispensou.
9. E bem: o juiz iria ouvir Sócrates com que finalidade? Perder tempo? É que ontem, José Sócrates já respondeu enviando uma carta ao Jornal de Notícias. Está respondido: o que mostra, mais uma vez, que o nosso Código de Processo Penal não está pensado para uma justiça mediatizada. Dir-se-á que nos Estados Unidos, a mediatização da Justiça é recorrente. Certo: contudo, nos Estados Unidos, o poder de intervenção e direcção do processo pelo juiz é superior do que em Portugal. São sistemas jurídico-penais diferentes.
10. Isto é o Direito. E a Política? Pois bem, importa analisar politicamente a carta de José Sócrates. No fundo, o que José Sócrates faz é recusar o exercício de um direito pessoal – o direito de exigir a aplicação da medida coactiva menos gravosa para a sua liberdade. A pulseira electrónica nasceu por inspiração de António Costa para humanizar a aplicação de medidas coactivas e penas. José Sócrates vem, agora, dizer que a pulseira é a despersonificação, a desumanização!
11. O mais relevante, e que os leitores devem reter, é o seguinte: José Sócrates tem um plano na cabeça. Na cabeça de José Sócrates, desde o início do ano, está a ideia da irreversibilidade da prisão preventiva. Então, Sócrates teve de encontrar uma estratégia que utilizasse a prisão preventiva em seu benefício. E encontrou-a: converter-se numa vítima política. Aplicar a estratégia e os métodos da política ao processo penal. O que nos leva a uma interrogação: o que leva José Sócrates a preferir o julgamento popular, o julgamento mediático – ao julgamento estritamente jurídico feito nos tribunais? Para nós, a resposta é simples: José Sócrates acha que é mais fácil ganhar no campo político, no campo mediático – do que no campo jurídico. Porque será? Bom, isso já é com José Sócrates – e o leitor poderá formular o juízo que lhe aprouver, em consciência e liberdade.
12. De facto, é curioso notar que José Sócrates e os seus advogados são muito assertivos na comunicação social, muito violentos com os procuradores e com os jornalistas nos jornais e nas televisões – mas são muito suaves, redondos e pouco clarividentes nas alegações que dirigem ao Tribunal. Porquê? Por uma razão: porque apostam no julgamento político e mediático –e por esta via, condicionar o processo jurídico.
13. E o calendário até joga a favor de José Sócrates: a acusação é conhecida até Novembro (podendo ser antes) e as eleições serão em Setembro ou início de Outubro. Ou seja: José Sócrates poderia não ser acusado e, nesse cenário, viria em força para a campanha eleitoral, sendo recebido em apoteose pelo povo socialista; se se confirmar a acusação, vamos ter José Sócrates a fazer-se de vítima política todos os dias, condicionando a agenda de António Costa. Evidente! Porque José Sócrates, mal ou bem, julga que com o PS no Governo – tudo será diferente. E que os novos ventos voltarão a soprar em seu socorro!
14. Daí que não podemos deixar de ligar esta cartinha de José Sócrates com a proposta de António Costa de proteger os titulares de cargos políticos de acusações ou aplicação de medidas coactivas (é verdade que a medida desapareceu do programa eleitora do PS – pudera! Costa tinha mesmo de a esconder…). Ora, sabendo José Sócrates desta intenção do PS, ele só poderia mesmo pretender continuar em prisão preventiva – ele tem de aguentar o discurso da vitimização política até Setembro/Outubro! Até às eleições. Porquê?
15. Pois bem, o leitor (atento!) já percebeu: para José Sócrates criar uma narrativa que venha a legitimar a mudança do Código do Processo Penal por parte dos socialistas, com o único propósito de criar uma justiça para políticos e uma justiça para os restantes cidadãos. E criar um ambiente que seja propício a uma absolvição de José Sócrates!
16. Em suma, José Sócrates, com a singela cartinha ao “JN”, condiciona António Costa. É um condicionamento fortíssimo, quase (se não mesmo!) chantagem. Se José Sócrates for inocente ou não existir prova bastante contra o socialista, deverá ser absolvido – mas através de um processo jurídico, segundo os trâmites legais. Até agora, a actuação do Ministério Público tem plena cobertura legal. Já os joguinhos políticos de Sócrates e seu advogado…enfim, querem a justiça política. É uma opção.