A fugir à asfixia da casbá meio soterrada está a biblioteca corânica. Com quatro mil livros, sobre temáticas que vão da matemática à astronomia, passando por obras religiosas, poéticas, gramáticas, dicionários de animais, o espaço é de cultura no meio do deserto. Não para todos, que os livros estão fechados a sete chaves em armários vidrados: alguns residentes folhados da biblioteca vêm de lugares como o Mali ou o Irão – e a obra mais antiga data de 1063 e encerra versículos do Corão que terão sido escritos em Córdoba.
Explica um guia presente que “professores universitários podem consultar os livros, mediante autorização de Rabat”. As preciosidades, reveladas por cortesia, são vigiadas pelo retrato do Rei Mohammed VI, omnipresente nos espaços públicos e muitas vezes particulares. A imagem do falecido pai e anterior monarca Hassan II também guarda a sala. E o zelo é bem preciso: os tesouros literários aqui guardados não foram digitalizados para a posteridade (e para democratizar o acesso e as consultas).
Fora do espaço silencioso e quase asséptico da biblioteca impera o ocre da terra. Ainda que ali, no vale do Draa, a água pinte de verde a paisagem, a escassos quilómetros dominam os tons do deserto. Podem ser as variantes pedregosas do anti-Atlas, onde serpenteiam desfiladeiros granulosos de rochas, percorridos por ventos que ao longo de milhares de anos desenharam caminhos. Ou o chão seco de texturas crocantes que estalam quando se anda sobre elas. Ou a areia macia que emudece os passos esforçados dos viajantes. Ou as tiras finas de terra que, já desidratadas, são memórias em finas lâminas da água que se evaporou. No capítulo das lembranças está o lago Iriqui: uma área de secura a perder de vista, enganosa para os incautos que ao longe pensam ver água. A miragem torna-se realidade, dizem os locais, quando chove e o Iriqui ganha corpo de mar – até voltar a desaparecer.
A fazer esquecer a aridez que prevalece, o vale do rio Ounila, em certas alturas do ano pouco mais do que um riacho fácil de atravessar, foi percorrido pela antiga rota das caravanas. As edificações da casbá Aït Ben Haddou, com uma história superior a 500 anos, estão inscritas no património da UNESCO desde 1987. É um património vivo, onde ainda moram algumas pessoas, apesar da ausência de electricidade e saneamento. A erguer-se falésia acima, o conjunto soma a casbá na parte inferior, o ksar – onde vivem as pessoas – mais acima, e o celeiro rodeado por um muro, no topo, a cerca de 1.600 metros de altitude. “O ksar tinha muçulmanos e judeus. Conta-se que o celeiro estaria habitado por uma princesa judia”, diz um guia.
Lá em cima, a vista ampla para o vale e as montanhas fazia antigamente do lugar um posto de vigia para acautelar possíveis invasores. E por isso o celeiro tanto servia para guardar colheitas como para pôr a salvo bens que as populações consideravam preciosos – e, fortificado (uma raridade nos celeiros da região), era o último reduto em caso de cerco.
Se a grande maioria dos habitantes se mudou para a aldeia construída no vale, do lado de lá do Ounila, onde há escola, posto médico, hotéis, luz e saneamento básico, muitos mantiveram a relação com a casbá, transformando as antigas habitações em pequenas lojas que atraem os quatro mil visitantes semanais.
A conservação das casas, que parecem paradas no tempo, valeu que aqui se filmassem produções como Babel, O Gladiador, A Jóia do Nilo – e, inversamente, a presença de equipas de filmagens é hoje também usada como chamariz de autenticidade. “Eu sou o meu património”, resume Mohamed Jamal Eddine, apresentado como legítimo descendente da família Ben Haddou, trajado de gandora branca e amarela às riscas – um fiel resistente da casbá.